As metamorfoses do poder

Um dos mais grandiosos ensaios do século XX, onde Canetti nos faz compreender o fenómeno moderno da massa e das formas de poder que lhe correspondem

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É justo e necessário dizer bem alto que chegou finalmente à edição portuguesa uma tradução de Massa e Poder, a “obra de uma vida” de Elias Canetti (1905-1994), graças à editora Cavalo de Ferro — e aos tradutores Paulo Osório de Castro e Jorge Telles de Menezes —, que já tinha publicado, em 2011, Auto-de-Fé, a obra-prima de ficção narrativa desse enorme e inclassificável escritor de língua alemã, nascido na Bulgária, impregnado daquele alto teor analítico da cultura do fim do Império Austro-Húngaro, a quem foi concedido o Prémio Nobel da literatura em 1981.

A edição original de Massa e Poder é de 1960, mas sabe-se, por um testemunho do próprio Canetti, que o primeiro projecto de um livro sobre a massa nasceu logo em 1925. Os trabalhos preparatórios para este volumoso ensaio (a edição portuguesa tem cerca de 600 páginas), resultado de uma investigação de grande alcance e de uma análise sem fronteiras disciplinares, parecem ter sido decisivos para a escrita do seu primeiro romance, Auto-de-fé, de 1935, que tem como protagonista a estranha personagem de um sinólogo que vive encerrado numa biblioteca — quando sai e se abre ao mundo, quebra-se a perfeita harmonia em que sempre tinha vivido e entra na dissolução e no caos. Este romance encerra de certo modo todos os temas canettianos e, muito particularmente, aqueles que estão na base de Massa e Poder, um tratado monumental que não obedece aos protocolos nem às regras codificadas de um trabalho de cariz científico e académico, nem é facilmente definível em termos disciplinares. Ensaio sócio-antropológico, tratado de psicologia social, estudo de sociologia das massas — eis algumas das categorizações que tentam apreendê-lo. E quando se tenta integrá-lo numa constelação, obrigatório é referir A Psicologia das Multidões (1895), de Gustave Le Bon, e Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), de Freud. A esses, devemos acrescentar outra obra raramente citada (talvez porque só foi publicada integralmente em 1979, quase 30 anos depois da morte do seu autor), a Teoria da Loucura das Massas, de Hermann Broch, outro escritor vienense. O que é evidente é que Canetti se viu confrontado com o problema por ter assistido à eclosão da Primeira Guerra Mundial e, depois, às revoluções, à grande inflação alemã, à depressão económica, às ditaduras fascistas, as quais extraíram o seu poder de uma artificial sublevação das massas. Canetti atravessou o século com uma sensibilidade sismográfica que o seu contemporâneo Karl Kraus tinha reivindicado com uma fúria apocalíptica.

A massa, segundo Canetti, é um fenómeno de concentração de um conjunto de indivíduos que tende para um crescimento e para um objectivo. E o princípio da sua formação é o “medo de contacto”: todas as distâncias e protecções que os homens criaram por se sentirem ameaçados pelos outros e pelo desconhecido são ditadas pelo medo de serem tocados. O ponto de partida de Massa e Poder é esse medo originário (Canetti já tinha escrito na sua autobiografia: “Os nossos medos nunca se perdem, ainda que os seus esconderijos sejam misteriosos”) que se inverte em formações de massa. Através das massas, os corpos aproximam-se como se formassem um único corpo.

Canetti analisa então diversos tipos de massas “visíveis” (já que mais à frente ele avança com o conceito de “massas invisíveis”, as dos mortos e as dos espíritos das religiões), que categoriza e identifica como princípio de explicação das guerras e das ditaduras (e fácil é perceber que este ensaio traz uma dimensão antropológica e de psicologia social para a compreensão do fenómeno do totalitarismo, estudado por Hannah Arendt na perspectiva política). Depois desta primeira parte do livro, o autor aprofunda a questão da origem da própria massa. Mostrará então que ela é constituída por elementos arcaicos e que não é possível estudá-la sem regredir à formação de que ela deriva: a matilha. A matilha, uma forma de excitação colectiva, é a mais antiga e a mais limitada forma de massa humana, aquela que precedeu todas as massas, no moderno significado da palavra. Tal como a massa, também a matilha compreende tipos distintos: a matilha de caça, a matilha de guerra, a matilha de lamentação, a matilha de multiplicação. Neste ponto, Canetti entra talvez numa das teses mais controversas do seu ensaio. Remeter a origem da massa moderna para a arcaica matilha supõe retirar aquela da determinação exclusiva das configurações sociais e económicas do nosso tempo e implica que a quantidade — as multidões — não é uma condição sine qua non do fenómeno da massa. Percebemos melhor o que há aqui de polémico quando lemos a transcrição de uma entrevista radiofónica que Adorno fez a Canetti em Março de 1962 (e como isto nos faz hoje sorrir: Adorno pondo ao seu serviço um dos meios mais poderosos da “indústria cultural”). Muito nitidamente, Adorno mostra nessa entrevista que tem dificuldade em aceitar os elementos arcaicos da matilha. E se por várias vezes aproxima Massa e Poder da sua (e também de Horkheimer) Dialéctica do Iluminismo, quando chega a essa condição regressiva tão estranha a qualquer mediação dialéctica mostra-se distante e com reservas. Para os modelos da teoria social da Escola de Frankfurt, Massa e Poder tem demasiada imaginação e muitos arcaísmos para um tratado sócio-antropológico (conseguimos intuir isso na entrevista de Adorno, apesar do tom de enorme respeito e admiração, mas num ensaio de Axel Honneth sobre Canetti percebemo-lo melhor).

Depois da secção sobre Matilha e Religião, entra-se na secção intitulada Massa e História. E aqui o objecto são as nações, tratadas enquanto religiões, uma vez que, tal como estas, elas têm a tendência para adquirir de tempos a tempos — diz Canetti — essa condição. E, em tempo de guerra, as religiões nacionais agudizam-se de forma extrema. A característica principal que confere às nações esse carácter religioso é o facto de os membros de uma nação nunca se sentirem sós, formarem uma unidade que é sempre uma massa ou então, para utilizar um outro conceito de Canetti, um “símbolo de massa” (o símbolo dos ingleses é o mar, o dos alemães é o exército, o dos franceses é a revolução, etc.). Um dos capítulos desta secção é dedicado à situação da Alemanha depois da celebração do Tratado de Versalhes, com especial incidência na grande inflação. E é no capítulo seguinte que se inicia a análise de um detentor do poder que é o herói sobrevivente.

Complexos, longos e variados são os caminhos que o ensaio de Canetti percorre na sua vasta análise do poder (a secção que dedica à ordem, ao comando, é fundamental e de largo espectro), mas há uma questão que não pode ser omitida: trata-se da morte. A morte é o perigo supremo e, enquanto tal, o indivíduo que detém o poder é aquele que dispõe do direito de vida e de morte sobre os outros. E a morte está presente neste ensaio do princípio ao fim. Para Canetti, afinal, a massa não é senão um gigantesco esconderijo onde a morte é eludida. 

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