As cartas de um soldado nas trincheiras soam mais alto do que metralhadoras

A 15.ª edição do FIMFA arranca hoje com The Great War, da companhia holandesa Hotel Modern, no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Uma espantosa descida ao inferno da guerra através de uma paisagem viva e de cartas escritas nas trincheiras.

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Joost van den Broek

Há alguns anos, o artista visual holandês Herman Helle foi forçado a cumprir serviço militar. Não tinha particular atracção pelo manuseamento de armas, sobretudo devido à história que conhecia do seu pai, combatente na Indonésia contra tropas japonesas na Segunda Guerra Mundial, durante a ocupação que pôs cobro ao domínio colonial da Holanda na região das chamadas Índias Orientais.

O pai seria feito prisioneiro de guerra e a história ficaria gravada como um acontecimento trágico na família. Daí que Herman, fundador do colectivo Hotel Modern, se tenha surpreendido ao perceber que gostava da adrenalina de disparar uma metralhadora que lhe fora colocada nas mãos pelo exército. Com a curiosidade acicatada pelo treino que o preparava para agir numa situação de guerra, resolveu experimentar disparar contra o próprio capacete. O resultado foi inquietante, já que o generoso buraco criado pelo impacto declarava a inutilidade daquela protecção.

Regressado à sua vida civil, a história pespegou-se como um fantasma aos dias de Helle e ganhou espessura quando o também responsável pelas maquetes do arquitecto Rem Koolhaas (autor da Casa da Música, no Porto) juntou a vontade de reflectir sobre o que teria sido para um soldado estar num cenário de guerra a um desejo premente de trabalhar uma paisagem viva. “Ele surgiu com essa ideia de uma paisagem que se transformasse, que fosse manipulada ao vivo diante do público e fosse filmada ao vivo”, conta Pauline Kalker, outro dos membros do Hotel Modern. “Depois pensou que a Primeira Guerra Mundial era uma óptima história para se contar com a paisagem enquanto personagem principal, porque a paisagem foi muito destruída – tal como a alma de cada soldado no final da guerra.” O facto de cada um dos elementos deste colectivo e o compositor que se lhes juntou, Arthur Sauer, terem uma intensa experiência familiar com a guerra – o avô de Kalker morreu em Auschwitz – tornou óbvia a necessidade de criar The Great War, espectáculo de abertura do 15.º Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA), quinta e sexta-feira no palco do Teatro Maria Matos, em Lisboa.

Escolhido para o arranque do FIMFA, que se prolonga até 24 de Maio, The Great War faz parte de uma pequena fatia da programação que revisita a história do festival, contemplando alguns dos espectáculos que ajudaram a construir a sua reputação como um acontecimento singular e especialmente desafiante no calendário dos espectáculos em Portugal.

Apresentado em 2007, embora com uma atribulada estreia dada a súbita ausência forçada de uma das actrizes originais, The Great War regressa com o estatuto crescente dos Hotel Modern neste circuito, partilhando esse quadro de honra de repetentes com O Avarento, da Compañia Pelmànec, e os alentejanos Bonecos de Santo Aleixo, no último dia do festival. “Gostamos de oferecer ao público a possibilidade de escolher entre espectáculos muito distintos, como é o caso da sofisticação do de abertura e da ruralidade do espectáculo de encerramento”, diz Luís Vieira, que divide a direção artística do FIMFA com Rute Ribeiro.

A inclusão de The Great War, e o seu recurso a cartas escritas por soldados nas trincheiras da Primeira Guerra, acabaria depois por abrir portas à presença de La Maquina de la Soledad, da companhia mexicana Hermanos Oligor, em parceria com os espanhóis Microscopía. “Também eles partem de cartas, só que de amor, e da memória”, refere Rute Ribeiro. “Achámos curioso contrapor estas duas formas de pegar no mesmo tipo de material e usá-lo de uma maneira bastante diferente.”

Um saco de cartas

As cartas dos soldados que se ouvem em The Great War surgiram de uma necessidadeque o Hotel Modern sentiu de introduzir personagens na peça capazes de gerar uma identificação no público. Não bastava o inesperado realismo de brócolos a arderem como se fossem árvores, de umas botas que se enterram num solo lodoso, de um fósforo que se acende e que mais parece um gás tóxico a ser lançado na direcção do inimigo. Faltava a presença da voz para acrescentar uma dimensão emocional ao impacto visual e sonoro que já tinham concebido. Sabendo disso, um amigo de Herman Helle, de visita a uma loja de antiguidades em Marselha, encontrou um saco cheio de cartas escritas por um soldado durante todo o período da Primeira Guerra. “Era muito dispendioso porque há pessoas que coleccionam envelopes com selos usados”, conta o compositor Arthur Sauer. “Mas como ele queria apenas as cartas, estiveram na loja a tirar as cartas de dentro dos envelopes e depois passou-as ao Herman.” Fica então por conta de Prospère, soldado francês, a espessura psicológica da guerra contada em The Great War, mais humana do que política, destapando aquilo que pensavam e faziam os militares na frente de batalha.

Foi Sauer quem sugeriu que a equipa criativa viajasse munida de um livro dedicado a antigos cenários de guerra para perceber as marcas da devastação que pretendiam retratar. Para sua estupefacção, encontraram paisagens com vestígios evidentes de arame farpado, granadas deixadas ao abandono, solo contaminado, crateras provocadas por bombardeamentos ou explosões de minas. A guerra continuava a ser uma ferida exposta.

 A pesquisa acabaria por sugerir alguns dos pormenores mais realistas em The Great War, como uma câmara de vigilância que, filmando a preto e branco, refaz os passos dos soldados num terreno que é uma mistura de terra violentada e corpos caídos. Apontaria ainda para a reprodução fiel de sons de metralhadoras ou para a gravação real, efectuada a 11 de Novembro de 1918 (dia do armistício), em que um soldado francês certamente embriagado – “é assim que soa e é também o que eu faria, embebedar-me numa tal situação”, diz Sauer – canta alegremente a música que o faz desaparecer rumo ao horizonte, deixando para trás um palco de barbárie.

A imersão realista no espectáculo é apenas interrompida, de tempos a tempos, pelas mãos que manipulam as figuras, evocando a absoluta solidão de um soldado, empurrado para a batalha em nenhures por meio de ordens dadas a partir de um gabinete longínquo. No sítio onde as botas se afundam e tocam em corpos que o solo vai engolindo, já não há “ideais ou ambições de heroísmo” que resistam, diz Pauline Kalker. Há apenas a ordem de alguém ausente.

A presença da dança

Desde que o FIMFA arrancou em 2001, Luís Vieira e Rute Ribeiro dizem assistir a uma transformação na opinião do público sobre “o que é este universo das marionetas”. “Acho que hoje temos um público muito mais esclarecido e capaz de discutir os espectáculos de uma forma completamente diferente”, defende Vieira. Ao alargamento do entendimento daquilo que podem ser as marionetas e as formas animadas corresponde igualmente o mesmo movimento inclusivo por parte dos mais variados artistas, deixando de funcionar em áreas perfeitamente demarcadas, em virtude de um maior interesse de gente do teatro e da dança por meios estranhos às práticas mais convencionais das suas linguagens de origem.

É disso exemplo a programação de 2015, onde se encontra, por exemplo, Xavier le Roy, nome maior da dança europeia , apresentando Sans Titre que, pela sua especificidade de meios, se integra inesperadamente no amplo escopo do FIMFA. A dança, de resto, surge também nas propostas do brasileiro Duda Paiva, da companhia belga Mossoux-Bonté, e do espectáculo Hale, uma criação colectiva de Aleksandra Osowicz, Filipe Pereira, Helena Martos, Inês Campos e Matthieu Ehrlacher nascida no Fórum Dança. “Achámos muito interessante que, sendo muitos deles da área da dança, se liguem ao mundo das marionetas de uma forma totalmente distinta”, realça Rute Ribeiro. “Acontece muito estes criadores trabalharem com objectos ou formas animadas sem terem consciência que estão a entrar neste universo.”

Satisfeitos por terem conseguido levantar mais uma edição do FIMFA, os dois directores artísticos continuam, no entanto, a lamentar as limitações orçamentais que não permitem à estrutura contribuir com co-produções internacionais ou apoios à criação que pudessem valorizar mais a acção do festival. “O orçamento de programação deste ano está muito próximo da primeira edição do festival”, queixa-se Luís Vieira. “Tem havido muito boa vontade da nossa pequena equipa e dos grupos que acolhemos, mas temos vindo a trabalhar com condições mínimas.”

Essa é a batalha a empreender a partir de 25 de Maio, depois da última apresentação dos Bonecos de Santo Aleixo, no Teatro Taborda. A partir de hoje, todos os dias são de festa. Mesmo que num cenário de guerra.

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