Árvores para o caminho

Território é o que a coreógrafa Joana Providência viu quando fechou os olhos e acordou no mundo primordial, e muito anterior às palavras, de Alberto Carneiro. Não é de lá que somos todos?

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PAULO PIMENTA

Avança-se pelo mundo de Alberto Carneiro como por uma floresta. Às escuras, tropeçando em árvores, até aparecer uma clareira e o céu explodir na luz desgovernada de uma manhã de Inverno – bom dia, epifania.

Ou pelo menos é assim que imaginamos Joana Providência a avançar pelo mundo de Alberto Carneiro agora que o transformou numa peça para quatro bailarinos, três actores, umas quantas árvores e muita terra, tudo espalhado pelo chão da ACE/Teatro do Bolhão, no Porto, onde Território, co-produção com as Comédias do Minho e com a Culturgest, teve estreia anteontem e permanece até ao próximo dia 25. É um mundo primordial, e radicalmente anterior às palavras, em que a luz se desfaz em trovoada, o céu se desfaz em chuva, o mar se desfaz em espuma, o som se desfaz em neve, a pedra se desfaz em terra e a madeira se desfaz em serrim, se não arder antes. Mas em que haverá sempre árvores no caminho. Não se desfazem nunca.

Tal como Alberto Carneiro, este espectáculo teria sido outro na ausência de uma relação directa com esse mundo (“Se tivesse nascido na cidade, se tivesse vivido a minha primeira infância na cidade, a minha obra não seria o que é. Nem eu, provavelmente, me teria encontrado com este mundo. Sendo a mesma pessoa, fisicamente, o mesmo nariz, as mesmas orelhas, não seria o mesmo. A minha sensibilidade foi construída numa relação directa com essas coisas. Aprendendo a amar essas coisas. E não as dispensando”, explicou o escultor numa entrevista à revista 2, em Junho do ano passado, recordando os intransponíveis 20 quilómetros que noutro país, o Portugal dos anos 40, separavam a sua aldeia, São Mamede do Coronado, do Porto).

Para ele, houve um antes e um depois de uma certa cerejeira “frondosa, que dava frutos maravilhosos”, a única árvore de todo o quintal (“Anos mais tarde, o meu pai decidiu cortá-la, já eu era adulto. Transformei-a numa escultura”). Para Joana Providência, também há um antes e um depois de um certo passeio pela floresta do Corno do Bico, em Paredes de Coura, um antes e um depois de “uma lindíssima clareira de bétulas” onde a coreógrafa pediu aos intérpretes de Território que se deixassem reconfigurar pela paisagem e fossem até onde ela os levasse (às vezes ofuscados pela luz, outras vezes perdidos na escuridão): “Há sequências do espectáculo que resultam de memórias – físicas, sobretudo – dessa experiência no Corno do Bico. Mas também trabalhámos muito a partir de outras experiências que os intérpretes foram buscar – embora curiosamente os mais novos tenham menos memórias, menos impressões de experiências tidas na natureza.”

 

Abstracção

Em parte, o contacto com a obra de Alberto Carneiro – uma obra em que a vida se confunde com a arte e arte se confunde com a vida, tal como fixava, para memória futura, o título da sua última grande exposição no Museu de Serralves, Arte Vida/Vida Arte – preencheu esses buracos negros. “Fomos visitá-lo ao atelier, onde pudemos estar muito perto das peças, no sentido mais material do termo, e fazer-lhe algumas perguntas. Mas sobretudo pudemos ouvi-lo falar do modo como foi avançando e encontrando um discurso sobre o mundo, um discurso muito nobre no respeito pelo lugar de todas as coisas. O que mais me impressionou nesta aproximação à obra do Alberto Carneiro foi constatar que por trás dela está verdadeiramente uma postura perante a vida”, diz a coreógrafa, que antes de Alberto Carneiro já tinha sido visita de Paula Rego (Mão na Boca, 2004) e de Graça Morais (Terra Quente, Terra Fria, 2011). Nada a ver, explica: onde ali havia personagens, histórias e até políticas concretas, infinitas possibilidades de “era uma vez”, aqui há apenas a natureza no que tem de mais material, mas também de mais intangível. “Os corpos da Paula Rego têm narrativas. As mulheres transmontanas da Graça Morais também. Os corpos do Alberto Carneiro… São as árvores, são as pedras – há essa coisa de os reduzir à essência, a uma matéria universal. É uma obra com muitas zonas de abstracção, o que nos levou a uma peça com muitas zonas de abstracção também, embora o facto de o Alberto Carneiro escrever muito sobre o que faz nos tenha dado pistas valiosas”, continua.

Nalguns casos, claro, a simples inscrição de sete pessoas num palco transforma-o num ser vivo; noutros, são os elementos da natureza para ali transpostos (árvores, pedras, terra, canas de bambu) que fazem os intérpretes mover-se (o tronco que tanto avança como recua em direcção ao casal deitado, a árvore que tanto paira como se abate sobre uma mulher, o bambu que tanto cresce como diminui de tamanho em função do tamanho do mundo): “A relação que eles estabelecem com esses elementos organiza e dá um sentido ao movimento. Mas também acontece o contrário, quando são as pulsações daqueles corpos, considerados individualmente ou tomados como colectivo, que funcionam como motor do movimento. Lá está: não são corpos quaisquer, são corpos em que se depositaram resíduos e memórias dos lugares, das matérias. Às vezes esquecemo-nos, mas é da natureza que vimos todos.”

Até ao fim do ano, esses corpos continuarão em trânsito pelo território. Acabarão por chegar à grande cidade (a peça apresenta-se a 5 e 6 de Dezembro na Culturgest, em Lisboa), mas entretanto cruzarão o Alto Minho (de 30 de Outubro a 29 de Novembro, Território fará itinerância por 15 freguesias dos concelhos de Paredes de Coura, Monção, Melgaço, Valença e Vila Nova de Cerveira) e haverá sempre árvores no caminho. Tal como Alberto Carneiro, eles continuarão a ter o cuidado de não derrubar nenhuma.

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