Artistas todo-o-terreno

Os PAUS lançam o HAUS para fazer do “fixe” uma forma de estar e de pagar as contas. Fred Ferreira trabalha 14 horas por dia para ser feliz. A indústria da música reinventa-se – com os músicos na dianteira.

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PAUS e Fred Ferreira: um músico é mais do que isso para poder viver da música ENRIC VIVES-RUBIO e NUNO FERREIRA SANTOS

Na rua, estranhos não resistem à oportunidade de se verem a si mesmos reflectidos no vidro espelhado. Do outro lado, sentado num sofá, Hélio Morais, baterista dos PAUS e dos Linda Martini, já se habituou a assistir a estes pequenos actos de vaidade ou curiosidade. Quem passa pelo número 46 da Rua da Bica do Sapato, junto à estação de comboios de Santa Apolónia, em Lisboa, dificilmente adivinhará o que se passa atrás do vidro.

Nem Joaquim Albergaria, o outro baterista dos PAUS, habituado a dar nomes às coisas (trabalha em publicidade e marketing), sabe muito bem o que há-de chamar ao projecto que nasce naquele edifício. Ocorre-lhe a palavra “cooperativa”, mas, reconhece, não é bem isso. “Não te sei dizer o que é exactamente o HAUS ainda. Se é um estúdio? É. Se é um local de ensaios? É. Se é uma agência de concertos? É. Se é um grupo de pessoas a pensar noutras formas de os músicos portugueses conseguirem criar avenidas de expressão e de rendimento? Também é. Se há um nome para isto tudo? Não sei.”

Eis uma banda, os PAUS, transformada em equipa de construção civil. O objectivo é abrir o espaço em pleno durante o mês de Setembro. O HAUS, a “casa dos PAUS”, nasceu da vontade de passar os conhecimentos adquiridos em anos de estúdio e estrada a outros músicos. “Todos nós trabalhamos com música de alguma forma, com valências diferentes. O que nunca tínhamos pensado fazer era aproximar as nossas valências para construir uma coisa maior”, conta Joaquim.

No primeiro andar, um estúdio está na fase final de construção. Há um piano, um velho órgão Farfisa, guitarras e seus pedais de efeitos, duas régies, aparato técnico e uma vista para o Tejo capaz de solucionar bloqueios criativos. No rés-do-chão, há um escritório onde mora um calendário com quadradinhos coloridos – é a agenda de Setembro de artistas como Filho da Mãe e Capitão Fausto – e três salas de ensaios (uma dos Linda Martini, outra dos You Can’t Win, Charlie Brown e uma terceira disponível para outras bandas).

Makoto Yagyu e Fábio Jevelim, os outros dois membros dos PAUS, trabalhavam no Black Sheep Studios, em Mem Martins, Sintra. Quiseram abrir um estúdio próprio em Lisboa. “Procurámos sítios, casas, prédios, lojas e armazéns durante um ano e meio, talvez mais”, conta Makoto. Encontraram este prédio de dois andares. Com espaço de sobra, decidiram fazer mais do que um estúdio e montaram uma “coisa polivalente” onde coubessem salas de ensaios e a agência de concertos de Hélio.

A partilha de um espaço favorece a criatividade: só por assistir a alguns ensaios, Fábio já funciona como uma espécie de pré-produtor do próximo álbum dos Linda Martini, agendado para 2016. Os PAUS acreditam que este ambiente informal, favorável a cruzamentos, beneficiará bandas novas que queiram fazer do HAUS a sua casa.

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O “fixe” a pagar contas
Rapidamente, surgiu outra ideia, menos comum: pôr o HAUS a fazer uma ponte entre a música e as marcas. A missão cabe a Joaquim Albergaria, que tem um pé em cada margem. O que pode sair daqui? Ele responde: músicos portugueses a procurarem nas marcas mecenas (para uma canção, um disco, um concerto, um evento), a fazerem “música para filmes, publicidade” e outros fins, a criarem vídeos, sons e eventos com o selo HAUS a que possam associar-se empresas.

Está entusiasmado: “Cria uma nova avenida de rendimento e de expressão para os nossos músicos.” Bónus: gera, “dentro do HAUS, um espírito comunitário, de troca de experiências, de meter músicos que não iriam trabalhar juntos” a fazê-lo.

Nos últimos anos, multiplicaram-se os exemplos de namoro entre marcas e músicos. O fabricante de calçado Converse abriu um estúdio em Brooklyn, Nova Iorque, no qual se pode gravar gratuitamente. A Red Bull, empresa de bebidas energéticas, tem uma “academia” para músicos que é uma referência em campos como o hip-hop e a música electrónica. O gigante automóvel Toyota fez uma editora, a Scion Audio/Visual, que não tem como missão fazer dinheiro, mas antes promover a marca de carros Scion entre o público mais jovem.

Em Portugal, a Optimus, agora NOS, lançou aquela que é possivelmente a mais prolífica editora de música nacional em actividade (a actual NOS Discos) e a Vodafone montou uma rádio dedicada às sonoridades indie, a Vodafone FM, da qual Joaquim Albergaria foi curador.

No HAUS, Joaquim quer inverter o processo habitual: pretende que seja “a música a aproximar-se das marcas e não o contrário”. “A indústria está a mudar e temos de perceber como é que vamos mudar. Estamos empenhados do lado do músico e do lado do fã”, elabora. Quer ouvir as pessoas dizerem: “Lá estão os gajos do HAUS a fazerem uma cena bué de fixe”. “E conseguirmos pagar as nossas contas com isso”, completa. “A ideia do ‘fixe’ é, se calhar, juvenil, mas é bué de importante. Sem o ‘fixe’ a indústria da música já não existiria. Nem a indústria da música, nem o nosso interesse.”

Negócio 360 graus
O HAUS nasceu em Santa Apolónia, mas Makoto e Fábio chegaram a tentar montar o projecto na freguesia de Campo de Ourique, também em Lisboa. Se assim fosse, seriam hoje vizinhos profissionais de Fred Ferreira, o rosto de outra aventura em que um músico é mais do que isso para poder viver da música.

Estamos na Rua Maria Pia, artéria de casas e poucas lojas. Fred passa os dias – 14 horas por dia, em média – num edifício que já foi uma loja com armazém. O número da porta, 530, deu o nome do projecto que une Fred, Regula e Carlão (Pacman, ex-Da Weasel), os 5-30.

Uma letra do trio hip-hop está afixada num corredor. As paredes acumulam material de anos de vida de dedicação ao ofício: cartazes, polaróides, discos (“O Senhor Extraterrestre”, de Amália, “Os Sobreviventes”, de Sérgio Godinho). Num móvel, um pianinho Hohner e um velho gravador Tascam irritam fetichistas e coleccionadores. Bolachas, televisão, lava-louça e máquinas de café denunciam a quantidade de horas aqui passadas.

Nos últimos dois anos e meio nasceu aqui uma estrutura multidisciplinar com um estúdio de gravação (o iá, operado por Fred e Bernardo Barata, onde gravaram 5-30, Banda do Mar, Diogo Piçarra, entre outros), uma agência de concertos (resultado de uma parceria com a Radar dos Sons), salas arrendadas a músicos (Sam The Kid e Carlão) e uma editora, a Kambas. Em Setembro, na Avenida de Roma, estará concluído um espaço para as bandas poderem preparar um disco ou um concerto.

É uma espécie de pequena indústria montada por alguém que viu, desde criança, os bastidores da grande indústria – Fred é filho de Kalú, dos Xutos & Pontapés. Ele é o elo de ligação entre estas coisas. Tal como os PAUS, quer passar conhecimento adquirido.

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“Passa quase por um negócio 360 graus. Tens uma parte em que podes gravar um disco; tens outra parte em que podes ter agenciamento, montar uma equipa técnica, montar uma banda; tens uma editora, que está ainda pequenina e em desenvolvimento, mas está a andar (lançámos o disco do Jimmy P [Fvmily F1rst, 2015], em parceria com a Sony, que correu muito bem)”, conta o também baterista dos Orelha Negra e da Banda do Mar.

É um “ciclo” e está quase a fechar-se. Diz-nos que somos “os primeiros” jornalistas a ver o que anda a preparar: uma caixa que se transforma num conjunto de gavetas e numa mesa, uma verdadeira loja ambulante. Faz questão de abrir a caixa, que concebeu em parceria com a editora nortenha Meifumado. Lá dentro há discos dos Orelha Negra, mas também dos emergentes Francis Dale e Isaura.


Fred quer ver estas lojas em digressão por todo o país à boleia de músicos. A estreia é já dia 12 no NOS em D’Bandada, no Porto O catálogo será, por regra, o mesmo em cada loja e não se cinge à Kambas, à MeiFumado e aos seus cúmplices. Cada artista que queira ver um disco seu na loja terá de levar uma caixa para os seus concertos. “Começo com quatro, daqui por um ano, se correr bem, terei dez.” Fred acredita que assim será, com a ajuda de “produtos exclusivos” ou de discos que sejam vendidos ali antes de chegarem às lojas tradicionais.

O baterista inspira-se em exemplos como o de Jack White, o ex-White Stripes que é dono da Third Man Records. A Rolling Record Store é um autocarro amarelo que, desde 2011, vende o catálogo da Third Man em concertos e festivais. Um vídeo de lançamento do projecto citava um estudo que dava conta que 97% dos adolescentes norte-americanos com idade para estar no ensino secundário nunca tinha entrado numa loja de discos.

“Talento incrível” desperdiçado
Fred quer “valorizar” o CD e o vinil, mas, como Jack White, conhece o contexto em que se move. As vendas de discos baixaram, mas nunca houve tantos concertos. Enfiar uma loja de discos numa caixa para levar em digressão “vai directamente ao público, muito mais rapidamente”.

“Estamos todos a adaptar-nos à realidade. Temos de ver como as coisas são e tentar ir conforme a maré. Está mais lixado. E o pessoal tem de trabalhar de outra maneira. Admiro muito as pessoas que estão a montar novas estruturas, é muito útil”, diz Fred. Dá os exemplos dos PAUS, de Nick Nicotine, rocker empreendedor do Barreiro (organiza o Barreiro Rocks, gere o Estúdio King, que também tem salas de ensaios), da Meifumado (editora e estúdio) e da lisboeta Enchufada, editora e promotora de festas que ajudam a cimentar o campo estético em que se move.

Não os vê como concorrentes. E saca de uma espécie de slogan: “Sozinho vais rápido, mas juntos vamos mais longe.” Os tempos parecem dar-lhe razão: Carlão gravou o seu álbum Quarenta (2015) no estúdio de Fred e Bernardo Barata, lançou-o em edição de autor em parceria com a FNAC e distribuiu-o pela Universal. Noutros tempos, o mais comum seria uma grande editora tratar de todo o processo.

Também os PAUS sabem que a indústria mudou. “A grande maioria dos músicos que conheço que vivem só da música tiveram de criar estruturas ou alternativas ao ser só músico”, afirma Hélio. Aconteceu com ele. Podia ter sido engenheiro electrotécnico, mas, por falta de interesse na matéria, ficou-se pelo bacharelato. Para poder viver só da música, trabalhou em várias agências de concertos até que fez a sua, a Concertina, em 2012. “Na minha geração de músicos, já poucos cresceram com a ideia de que vão ser ricos, de que isto dura para sempre.”

Há “uma mudança de paradigma em que os discos perdem importância”, admite Joaquim Albergaria. “Os discos são cartões-de-visita, que justificam reiniciar ciclos de trabalho, ou são marcadores, arquivos, de progresso em termos de criação. Não são rendimento, especialmente num país como Portugal.”

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NUNO FERREIRA SANTOS

“A ideia [do HAUS] é, partindo da experiência de cada um de nós, agilizar as possibilidades de expressão e de rendimento para esta comunidade de músicos. Quer seja dando-lhes uma boa gravação, quer seja pondo-os a tocar, quer seja pondo-os em situações de associação a outras entidades”, enumera Joaquim, farto de ver “demasiado talento incrível” desperdiçado em empregos das nove às cinco.

Fred Ferreira, pai de dois filhos, já vive só da música. “Se não estou fora a tocar, trabalho aqui umas 14 horas por dia, todos os dias. Sem férias, sem fins-de-semana. Faço as caixas, penso nisto, estou a produzir, tenho as minhas bandas, tenho concertos.”

Pelo meio, vai tentando acabar o seu primeiro álbum a solo. “Se conseguir 50% do que tenho na cabeça para lançar, produzir ou fazer já fico contente. Tenho de trabalhar para isso.”

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