Como o Estado Islâmico está a desafiar os arqueólogos

A destruição praticada pelos jihadistas mudou a forma como os arqueólogos encaram a sua missão. Já não são apenas investigadores, mas "militantes activos” na defesa do património

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Bombardeanento do templo Baal-Shamin, em Palmira, pelo Estado Islâmico AFP / HO / WELAYAT HOMS

A destruição do património histórico e cultural no Médio Oriente levada a cabo pelo Estado Islâmico (EI) tem forçado os arqueólogos a repensarem a sua missão. Impossibilitados de ir para o terreno desde que a guerra civil síria irrompeu em 2010, tiveram de deixar as suas escavações em pausa, sem saber quando irão regressar – ou se restará alguma coisa a que regressar, porque há sítios arqueológicos, como Palmira, que os jihadistas parecem determinados a apagar do mapa para sempre.

“Estamos à espera que as coisas melhorem, o que não vai acontecer em dezenas de anos”, diz André Tomé, arqueólogo da Universidade de Coimbra que integrou uma equipa internacional de escavação no Curdistão sírio, junto à fronteira turca. A última missão foi em 2010. Em 2011 os arqueólogos preparam-se para voltar, mas cancelaram a viagem duas semanas antes.

“Não se consegue imaginar uma solução política a breve ou médio prazo para a Síria. Primeiro é preciso eliminar o EI, depois é preciso resolver o problema grave com o regime. Até existirem condições para enviar missões para o terreno vai demorar imenso tempo. Não consigo ser optimista”, diz o arqueólogo português.

Há um mês os arqueólogos tiveram acesso a fotografias tiradas no sítio arqueológico, junto à cidade de Al-Hassakah, onde desenvolviam o seu trabalho e respiraram de alívio: tudo indica que permanece intacto. Em Julho, o EI atacou a cidade, mas foi repelido pelas forças curdas.

Uma das formas que os arqueólogos encontraram para prosseguir o seu trabalho, tanto quanto possível, é monitorizar a salvaguarda do património arqueológico sírio e iraquiano à distância. Nos últimos anos assistiu-se à formação de dezenas de organizações de especialistas com experiência no terreno. São estruturas mais ou menos informais que permitem uma circulação e partilha da informação alargada e expedita. Um dos objectivos é “ir monitorizando os danos que vão sendo feitos para, em articulação com a UNESCO, montar-se um plano de recuperação dessas áreas”, explica André Tomé.

Estas organizações, que funcionam em rede, reforçam e complementam a actuação da UNESCO que, apesar de ter observadores no terreno, está limitada em termos de intervenção directa. Uma das coisas que a UNESCO não pode fazer, por exemplo, é enviar fundos para os guardiões – anónimos, voluntários – que estão a tentar manter esses sítios a salvo. Em zonas não controladas pelo EI, porque “nas zonas dos Estado Islâmico não há nada a fazer”, diz o arqueólogo espanhol Juan José Ibañez, que até 2010 estava a trabalhar em dois projectos na Síria, em Homs e Sueida.

As organizações de especialistas dependem desses colaboradores locais para obter informações sobre o estado do património no terreno e procuram financiá-los através de donativos privados e institucionais, nota André Tomé. O que é, segundo o arqueólogo, “um investimento mínimo”.

Maria da Conceição Lopes, coordenadora do Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património da Universidade de Coimbra, que liderou o projecto de escavação na Síria onde André Tomé trabalhou, considera que “a ideologia da violência sobre o património” praticada pelos jihadistas coloca desafios inéditos aos arqueólogos. “Nós sabemos que quando Alexandre o Grande ou os romanos atacavam cidades chegavam a destruí-las completamente. Mas achávamos que esse tempo da barbárie já tinha passado”, diz.

“Durante a II Guerra Mundial também se roubaram muitas obras de arte e museus, mas não era para os destruir. E era feito às escondidas, fazia-se isso com algum pudor”, sublinha.  

Em termos práticos, a acção do EI está a mudar o trabalho dos arqueólogos porque existe uma preocupação cada vez maior em recorrer às novas técnicas digitais. “Conseguimos digitalizar e recriar em 3D um objecto, uma estátua, tabuinhas de argila, até monumentos”, diz André Tomé. “A arqueologia que se está a fazer no Próximo Oriente já tem essa percepção de que é importante preservar o melhor possível usando essas tecnologias.”

O trabalho arqueológico que desenvolve no Iraque desde 2013 está todo digitalizado; no início do próximo ano espera lançar um museu virtual, em 3D, da escavação. “Com uns óculos 3D, as pessoas vão sentir quase como se estivessem a caminhar no sítio arqueológico. A única diferença é não poder tocar.”

Se a intenção dos jihadistas é eliminar tudo o que não corresponde à sua ideologia radical, preservar nem que seja um registo digital de algo que foi destruído é uma forma de boicotar as acções do EI. O vestígio “pode perder-se fisicamente mas há um registo muito pormenorizado que foi preservado.”

André Tomé e Juan José Ibañez iniciaram novos projectos em regiões próximas – Iraque no caso do português, Líbano e depois Jordânia no caso do espanhol – que dão continuidade ao trabalho que estavam a desenvolver na Síria. Conceição Lopes vê nisso um acto de resistência “contra esta tentativa de impor um poder pela violência”.  

A ameaça do EI sobre o património “mudou a forma como nos posicionamos: não apenas como estudiosos, investigadores, mas como militantes activos de uma cidadania em torno da herança do passado”, diz a arqueóloga.

“Aquilo que sentimos, e por isso é que fomos para o Iraque, é que é agora que arqueólogos e especialistas têm de actuar e demonstrar que aquilo que fazemos é muito importante para conferir algum sentido ao tempo presente. Sinto essa urgência, mais do que sentia antes”, diz André Tomé.

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