Aquele passeio em Jerusalém que vai dar a uma criança presa

Que tipo de regime mantém na cadeia uma criança de 12 anos por atirar pedras? Israel tem na cadeia 414 menores palestinianos. Mais de 100 têm menos de 16 anos.

1. Conheci M. por acaso. Jerusalém é uma cidade onde saímos para dar uma volta porque é sexta-feira, a primeira depois do Ramadão e dia santo em geral para judeus e muçulmanos, e acabamos a entrar na Cidade Velha, que parece invulgarmente tranquila, relaxada, o azul-dourado do Verão, muçulmanos vindo de Al Aqsa, judeus indo para o Muro das Lamentações, cristãos dobrando a Via Dolorosa, até turistas de calções e câmara, e por acaso há uma porta aberta para um pátio, pedra velha de Jerusalém, centenas de anos, quem sabe mil, e ao fundo bicicletas e uma escada, e quando damos por nós estamos a tomar café árabe lá em cima, na sala-cozinha do palestinano M., a sua mulher e os seus nove filhos, e durante o café M. conta como foi visitar o vizinho de 12 anos, que está numa cadeia perto de Telavive, acusado de atirar pedras.

2. Que tipo de regime mantém na cadeia uma criança de 12 anos por atirar pedras? Aliás, que tipo de regime mantém na cadeia uma criança de 12 anos? Números oficiais: Israel tem na cadeia 414 menores palestinianos. Mais de 100 têm menos de 16 anos. Três têm menos de 14 anos.

3. Por cima e por baixo de M. moram os seus irmãos, com os respectivos filhos, ao todo quarenta pessoas na vertical. A matriarca da família morreu há meses com um cancro. A casa é deles há muito e foi renovada há pouco, para fazer quartos pequenos, criar privacidade, porque são muitas crianças e jovens adultos. Os rapazes com aqueles cortes de cabelo que todos — mas todos — os rapazes palestinianos agora parecem ter, rapado a toda a volta, deixando uma crista ou uma popa. As raparigas de jeans, t-shirts e as maciças cabeleiras que todas cobrem quando saem à rua, porque se tornou cada vez mais raro uma muçulmana andar de cabeça descoberta nas ruas de Jerusalém.

4. M. trabalha como taxista todos os dias menos sexta, por isso estava em casa. E dois dos filhos adultos trabalham numa pastelaria de Jerusalém Ocidental, a parte judia. São os três salários da casa, para a casa. M. lamenta que assim seja, porque o salário dos filhos devia ser para poupar, casar, se o seu próprio salário não tivesse caído com a vaga de tensão do último ano, os miúdos de Jerusalém Leste e da Cisjordânia que atacaram israelitas com facas, e foram mortos. O turismo caiu, e M. trabalha para uma empresa que serve hotéis do lado palestiniano onde normalmente se alojam turistas cristãos. Mas o pior, conta M, é que cada jovem palestiniano passou a ser suspeito, revistado, interrogado, e ele teme pelos nove filhos, o mais novo com cinco anos, a mais velha com 24. O amigo que me acompanha ouviu os tiros dos polícias que mataram alguns dos miúdos. Miúdos nascidos depois dos Acordos de Oslo, até depois da Segunda Intifada, quando tudo já tinha ficado muito mau. Tão mau como isto, sair com uma faca sabendo que se vai morrer.

5. O miúdo vizinho de M. não saiu com uma faca. Segundo a acusação, atirou pedras contra algo das forças de segurança de Israel, então as forças de segurança de Israel vieram prendê-lo a casa, entraram e levaram-no, conta M. Porque têm câmaras por toda a parte nos lugares sensíveis, e depois identificam os miúdos nas imagens. Quando M. o visitou , viu uma outra criança ainda mais nova. Estão lá, na cadeia perto de Telavive.

6. A descrição de como o vizinho de M. foi preso bate certo com os relatórios. Mais de 40 por cento dos menores palestinianos detidos por Israel, foram detidos em casa à noite. E se desde 2000 Israel manteve detidos e julgou pelo menos oito mil menores, nos últimos meses o ritmo das detenções mais que triplicou.

7. Human Rights Watch (HRW): “Entrevistas com menores que foram detidos, gravações de vídeo e relatórios de advogados revelam que as forças de segurança de Israel estão a usar força desnecessária ao deter e manter aprisionados menores, em alguns casos batendo-lhes, e deixando-os em condições inseguras e abusivas.” Sari Bashim, director da HRW para Israel/Palestina diz que “os menores palestinianos são tratados de forma que aterrorizaria e traumatizaria um adulto”, e que “berros, ameaças e espancamentos não são forma de a polícia tratar uma criança ou de obter dela informação.”

Segundo as fontes da HRW, “as forças de segurança de Israel frequentemente interrogam menores sem a presença de um familiar, violando a lei internacional e israelita que garante protecção especial a menores detidos”. Essa protecção, explica a HRW, “inclui só deter um menor como último recurso e tomar precauções para assegurar que os menores não são forçados a confessar culpa”.

8. Segundo a Defence for Children International — Palestine (DCI-P), “Israel é o único país do mundo que automaticamente leva menores a tribunais militares sem garantias básicas de julgamento justo”. Nas contas da DCI-P, são 500 a 700 menores por ano. Esta organização recolheu os testemunhos de 429 menores que foram detidos entre 2012 e 2015. “Três em cada quatro sofreram alguma espécie de violência física”. Em 179 dos casos, os menores tinham sido levados a meio da noite. Em 378 dos casos, os pais não foram notificados do motivo nem do destino de detenção. Em 416 dos casos (97 por cento), os menores não tinha nenhum familiar presente durante o interrogatório ou acesso a aconselhamento legal. Em 84 por cento dos casos, os menores não foram correctamente informados dos seus direitos. Mais: “Os interrogadores usaram de abuso de poder, ameaças e isolamento para coagirem alguns destes menores a confessar. A DCI-P documentou 66 menores mantidos em confinamento solitário por um período médio de 13 dias.” Num caso concreto, um menor de 17 anos ficou em solitária 45 dias. “Mais de 90 por cento dos menores mantidos em solitária fizeram uma confissão.”

9. Depois do café, M. levou-nos ao terraço. Era a hora da melhor luz, que talvez exista noutros lugares do Mediterrâneo, mas aqui bate na pedra que só existe aqui. E havia o Monte das Oliveiras lá ao fundo, mais próxima a dourada Cúpula do Rochedo, todos aqueles telhados e minaretes, torres, sinos e cruzes ao longo de 180 graus, passando pelo Santo Sepulcro. Do terraço de M., cheio de roupa estendida nas cordas, avistava-se o Bairro Muçulmano e o Bairro Cristão. Fora de vista, ficavam o Bairro Arménio e o Bairro Judeu. Mas viam-se bem as bandeiras de Israel que marcam as casas dos colonos, ocupantes de casas palestinianas, a começar pela que foi de Ariel Sharon.

10. Israel ocupou Jerusalém Leste, a Cisjordânia e Gaza vai fazer 50 anos (para o ano). Os colonos aumentam a cada ano (mês, semana, dia). De cada vez que abro o jornal há notícias sobre a construção de mais não sei quantas casas judias em território ocupado. Esta sexta, eu ia só dar uma volta com um velho amigo, mas uma volta em Jerusalém é sempre uma espiral. O meu amigo é um homem de fé, e sendo um homem de fé creio que pensa o mesmo do que eu: não é um caso de fé.

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