André Glucksmann, o filósofo funcionário de causas

Foi uma figura marcante da vida política e intelectual da França pós-Maio de 68. Fez o percurso típico dos antigos maoístas, reviu tudo e transformou-se num paladino do anti-totalitarismo. Como os outros “nouveaux philosophes”, usou com eficácia os meios de amplificação do seu discurso.

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André Glucksmann, notável filósofo-intelectual francês, morreu na segunda-feira em Paris, aos 78 anos. Esta designação, a de filósofo-intelectual, pode parecer uma redundância, mas é a melhor maneira de o definir e de o categorizar: situou-se entre dois pólos, o do pensamento filosófico e o da intervenção cívica e política à maneira de uma tradição muito francesa a que está ligada a figura do intelectual. Acabou por ser muito mais intelectual do que filósofo, e basta ler as notícias necrológicas dos jornais franceses para perceber que ele é evocado, celebrado e discutido muito mais pelas suas acções e tomadas de posição do que pela sua obra, que foi sempre uma continuação das suas guerras pelos meios da escrita das ideias, não necessariamente – e talvez até muito pouco – filosóficas.

Que acções e tomadas de posição foram essas? Foram aquelas suscitadas pelas grandes causas: a causa do anti-totalitarismo, dos direitos do homem, dos grandes valores ocidentais contra as suas derivas niilistas, a causa da liberdade cosmopolita, em defesa da qual mobilizou os seus últimos esforços, quando já se encontrava muito doente, que resultaram, em 2014, num livro que é uma apologia de Voltaire (Voltaire contre-attaque) e do espírito das Luzes. E aqui temos a persistente problemática francesa (francesa, isto é “civilizacional”, dizem os intelectuais franceses que nunca fazem a coisa por menos) que ciclicamente se aplicam a reivindicar a actualidade do espírito do século XVIII. Quem conhece as tensões e clivagens do pensamento francês sabe muito bem que invocar Voltaire é também marcar uma posição contra os efeitos da recepção nietzschiana e heideggeriana de um sector importante da filosofia contemporânea, em França.

André Glucksmann foi maoísta e, enquanto tal, entusiasta da revolução chinesa, envolveu-se fervorosamente no Maio de 68 e até teve a imprudência de militar durante um ano na Esquerda Proletária, um grupo revolucionário que se autodissolveu em 1973. Foi a decisão de que mais se arrependeu, confessou ele numa entrevista muitos anos depois. Tudo o resto não foi propriamente objecto de arrependimento, mas de um produtivo trabalho de revisão e de refutação, com grande sucesso no mercado das ideias.

Mas em 1975 iniciou um novo percurso, selado com um livro que é talvez o mais conhecido de toda a sua obra: La Cuisinière et le Mangeur d’Hommes. Ruptura com o marxismo, com as ideias comunistas, identificação do comunismo com o nazismo, exaltada referência aos campos de concentração, ao Gulag: o livro foi um ruidoso e enfático virar de página no percurso intelectual de Glucksmann. Foi sobretudo pela reacção ao Maio de 68 que ele entrou de pleno direito numa categoria de intelectuais franceses que, em vários momentos da sua vida, foram levados ao ponto de ter de “pensar contra si mesmo”. O que até pode ser motivo de elogio. Mas foi também por essa inflexão bem marcada que Glucksmann entrou numa distinta categoria surgida por volta de 1997: a dos “novos filósofos”, que tem em Bernard-Henri Lévy (B-HL) um outro destacado representante. Os novos filósofos distinguiram-se mais pelo modo eficaz de ocupar o espaço público mediático do que pelo trabalho propriamente filosófico. De “novo”, Glucksmann (tal como B-HL) teve a hiperpresença na televisão e nos jornais sempre que foi preciso erguer as bandeiras das causas pelas quais lutou. Um dos críticos mais ferozes do “novos filósofos”, Gilles Deleuze, que nunca foi nem maoísta nem comunista, criticou-os precisamente por procederem através de “grandes conceitos” (as grandes palavras: a Lei, o Poder, o Ocidente, o Mundo, etc.), de fazerem “amálgamas grotescas” e de introduzirem o “marketing literário ou filosófico”.

Seja como for, no plano da intervenção, onde ela foi considerada necessária, Glucksmann esteve lá. E, para ele, a intervenção teve um carácter de urgência sempre que o totalitarismo (o seu “gros mot”) assomava. Diga-se, com justiça, que esteve lá de maneira menos demagógica e narcísica do que o seu colega B-HL. Esteve com os boat- people, os refugiados do Vietname comunista. Foi, aliás, por sua mediação que Jean-Paul Sartre e Raymond Aron (dois adversários históricos) aceitaram um encontro histórico no Eliseu, ocupado então por Valéry Giscard d’Estaing, para convencer o presidente a levar a cabo uma intervenção humanitária em favor dos boat-people.

Acrescente-se este pormenor não despiciendo na biografia intelectual de André Glucksmann: ele era assistente de Aron na Sorbonne. Esteve também na denúncia da França pelo seu comportamento no genocídio ruandês. E esteve, sobretudo (foi a sua grande causa dos últimos anos), a favor dos independentistas chechenos e contra o autoritarismo do presidente russo Vladimir Putin. E esteve ainda a favor da intervenção militar na Sérvia. E esteve também a favor da guerra contra o Iraque (tanto em 1991 como em 2003). Ele aproximou-se, aliás, dos Estados Unidos, que considerou o último baluarte na defesa das democracias ocidentais. E esteve, com um livro, a marcar posição logo a seguir ao 11 de Setembro: Dostoievski à Manhattan. Tratava-se, neste livro, de pensar o niilismo e uma nova forma de violência do século XXI. E esteve também com Nicolas Sarkozy, na campanha presidencial em 2007, considerando-o “o candidato mais à esquerda”.

Mas também neste caso acabou por ter de pensar contra si mesmo e, em 2012, publicou um texto a criticar Sarkozi e a mostrar a sua decepção. Um sinal desta atitude crítica tinha sido dado algum tempo antes, quando publicou um artigo a defender os ciganos, numa altura em que Sarkozi tinha feito declarações incendiárias contra os roms. Foi assim André Glucksmann: uma figura que atravessou a vida intelectual francesa das últimas décadas como um representante extremo do que ela tem de singular, e que por vezes se presta à caricatura nas suas virtudes e nos seus defeitos.

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