Amélia Muge: “No fundo, fui à procura de uma conversa com Amália”

Um dos melhores discos de 2014, Amélia com versos de Amália, chega esta sexta-feira ao palco da Culturgest, em Lisboa. Uma Amália para lá do fado, mas por amor ao fado.

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O disco de Amélia Muge só com versos de Amália Rodrigues chega agora a palco Egle Bazaraite

Lançado em finais de 2014 e votado melhor disco nacional do ano pelo PÚBLICO e pelo Expresso, o disco de Amélia Muge só com versos de Amália Rodrigues chega agora a palco.

Um ano depois de ter sido anunciado oficialmente como projecto, Amélia com versos de Amália é estreado esta sexta-feira, na Culturgest, às 21h30, isto depois de uma ligeira antevisão (dois temas apenas) na Gulbenkian, onde Amélia surgiu como convidada especial no concerto do Kronos Quartet, a 11 de Novembro.

A ligação Amélia-Amália, universos distintos separados por uma só vogal, começou na admiração da primeira pelo canto e pela carreira da segunda. E isso levou-a ao livro Versos, de Amália, editado em 1997 pela Cotovia. “Eu comprei logo o livrinho, mal ele saiu. E já naquela altura achei muito curioso encontrar, em termos poéticos, uma Amália que não era só a que eu conhecia das composições mais ligadas ao fado. Ora quando a [actriz] Manuela de Freitas me fez a sugestão de musicar poemas da Amália aceitei imediatamente a ideia e com muito entusiasmo, porque na verdade eu andava à procura de fazer um trabalho que homenageasse o fado e os fadistas, pelo muito que esses fadistas me foram dando ao longo dos últimos anos. Porque não sendo eu fadista, foram eles que me ajudaram a perceber como é que um tema pode entrar nesse mundo.” Mísia foi a primeira fadista para quem Amélia compôs, contando-se hoje entre os vários que a cantam Ana Moura, Camané, Cristina Branco, Mafalda Arnauth ou Pedro Moutinho.

Do popular ao erudito

Agora, para abordar as palavras de Amália sem recorrer ao fado, Amélia trabalhou com José Mário Branco (um dos maiores músicos, compositores e arranjadores portugueses), Michales Loukovikas (cantor e compositor grego com ela quem gravou Periplus, em 2012) e António José Martins (seu indispensável parceiro desde a estreia, com Múgica). “A minha entrada nos versos da Amália não foi pela procura de um universo poético, mas de um universo onde eu encontro uma ligação com ela.” O próprio “com versos” do título do disco, diz Amélia, “faz lembrar conversas”. “No fundo, fui à procura de uma conversa com ela. E tudo aquilo que foi para mim o desvendar dessa pessoa, que vai tão fundo nos versos e por isso tão fundo naquilo que ela é. Traz a enorme pena, aquele lado sombrio, mas também traz o lado luminoso. E há o lado telúrico, com o qual eu também me identifico muito, não sei se por ter nascido em Moçambique. Quando ela diz ‘sou filha das ervas e pouco mais sei’, há ali um olhar sobre o mundo.”

O envolvimento com os poemas foi crescente: “Há ali um lado que imediatamente identifiquei como sendo de uma poesia popular, de origem oral, mas ao mesmo tempo, à medida que fui trabalhando e descodificando os poemas frase a frase, fui percebendo que também há ali uma contaminação dela pelos poetas mais eruditos que cantou. E é isso que torna a poesia de Amália muito interessante. Expoente máximo disso é a carta a Vitorino Nemésio: há ali uma reflexão que não é só sobre ela própria mas também sobre a poesia que faz.” A selecção cingiu-se a poemas que não tinham sido musicados, com excepção de um: “Pedi autorização para tornar a musicar Sou filha das ervas, porque aquilo é tão Amália que pensei que não poderia deixar de ter esse poema.”

E a escolha foi-se fazendo por si mesma. “Há um lado que é quase uma trilogia, e que tem mais a ver com a pena, a dor, o lado sombrio; há o lado mais humorístico, cujos arranjos estiveram a cargo do José Martins; há o lado mais rural, que no fundo faz ligação à família dela, da Beira Baixa, exemplarmente demonstrado num tema que o Zé Mário [Branco] musicou, Eu tenho dois corações; E há o lado, que é um pouco mais ameliano, das canções que não têm raízes em género musical nenhum.”

Um fado, só em palco

Do ponto de vista musical, todo este trabalho “foi concebido de uma forma muito partilhada”, diz Amélia. “Penso que isso se nota e é uma mais-valia muito importante.” Se na autoria das músicas é Amélia que assina a maioria (11 das 16, sendo as restantes assinadas por José Mário Branco, 3, e Michales Loukovikas, 2), no capítulo dos arranjos é José Mário Branco o autor da maior parte: 11, três dos quais em parceria, um com Michales Loukovikas e dois com José Martins, assinando este sozinho os restantes 5.

Na passagem a palco foi necessário substituir músicos, porque a impossibilidade de ter os 15 que participaram nas gravações obrigou a escolhas mais versáteis. Assim, ao lado de Amélia Muge (voz, braguesa e percussão), mantêm-se António Pinto (guitarras), Catarina Anacleto (violoncelo e voz), Ivo Costa (percussão), entrando de novo Manuel Maio (violino, bandolim e voz) e Daniel Salomé (sopros), além dos convidados António Quintino (contrabaixo, que já participara no disco) e Carisa Marcelino (acordeão). Mas as diferenças não ficam por aqui. “Eu não vou para o palco para reproduzir o que está nos discos. E estar na Culturgest, o que é uma honra para mim, permite-nos recorrer a meios técnicos para fazer coisas que muitas vezes estão no âmbito do sonho. Vou poder ter como protagonista a Amália através das palavras dela, não só na minha voz mas em palavras projectadas. Vamos estar inundados com as palavras da Amália.” Nestes “bastidores” de imagens e luz estarão Egle Bazaraite, José Martins e Manuel Mendonça.

No disco isso não acontece, porque “não fazia sentido”, mas em palco Amélia vai cantar um fado de Amália. Não revela qual, só diz que hão-de vê-lo justificado no contexto.

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