Amar como Anaïs Nin amou

Agapornis, que hoje abre o Festival Internacional de Marionetas do Porto (mas só para maiores de 18), é a primeira vez do Teatro de Marionetas do Porto com personagens do tamanho da vida. E um corpo-a-corpo com uma mulher em série — perigosa, como todos os amantes.

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SUSANA NEVES
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SUSANA NEVES

É uma vida para maiores de 18, a de Anaïs Nin.

Não por causa do encontro com Henry Miller e com a mulher da vida de ambos, June, mas por causa do que já vinha de trás (A Casa do Incesto não era só um romance que ela tinha escrito, era mesmo a casa onde tinha vivido com o pai, o pianista cubano Joaquín Nin) e pelo que continuaria a vir até 1977, o ano em que morreu de cancro e não de morte natural, como nunca morre o amor (“Anaïs Nin estava certa”, há-de dizer o poeta e cronista brasileiro Fabrício Carpinejar, o amor morre “porque o matamos ou deixamos morrer”, em “mortes patéticas, cruéis, sem obituário e missa de sétimo dia”).

Ela seria mais gráfica: teve uma vida para maiores de 18 por causa do sexo – em muitos sentido futurista, em muitos sentidos perigoso – que primeiro viveu e depois transcreveu, usando todas as letras, fazendo todos os desenhos, numa série de diários que conta uma história alternativa da primeira metade do século XX. É uma história tão alternativa que parece “quase contemporânea”, diz ao Ípsilon Rui Queiroz de Matos, que com Edgard Fernandes encena Agapornis, o corpo-a-corpo com Anaïs Nin que hoje abre, no Teatro Carlos Alberto, a 25.ª edição do Festival Internacional de Marionetas do Porto.

Em muitos sentidos, já agora, Agapornis tem o peso de uma primeira vez para o Teatro de Marionetas do Porto. Há precedentes no grafismo – João Paulo Seara Cardoso (1956-2010), o fundador da companhia, abriu-os logo em 1988, com a sua versão para maiores de 18 de um conto infantil, Capuchinho Vermelho XXX –, mas não na escala (as marionetas de Agapornis têm o tamanho de um adulto de estatura normal), nem no peso (real e simbólico) de pôr uma vida real às costas de um objecto inanimado (quatro, no caso, porque a Anaïs Nin articulada, e de tamanho natural, que se senta na chaise-longue cor-de-rosa, é uma mulher em série). “Queríamos fazer um espectáculo para adultos, assumidamente para adultos, até porque é matriz da companhia alternar peças infantis com criações para um público mais crescido. E ao fim de algum tempo a trabalhar nessa ideia chegámos a algumas conclusões. Primeiro, fazia sentido usarmos marionetas de tamanho natural, coisa que nunca tínhamos feito. Segundo, a Anaïs Nin era a figura certa para o imaginário – adulto – que tínhamos vontade de abordar”, explica a coreógrafa Isabel Barros, que assumiu a direcção da companhia depois da morte de Seara Cardoso.

Qual das Anaïs Nin (acabámos de escrever que é uma mulher em série)? Todas, respondem Rui Queiroz de Matos e Edgard Fernandes: “A Anaïs Nin dos diários, a Anaïs Nin de A Casa do Incesto, a Anaïs Nin da correspondência com Henry Miller, e até a Anaïs Nin de Henry & June [o filme de Philip Kaufman em que Maria de Medeiros era Anaïs Nin e Uma Thurman era June, a mulher de Henry Miller]. No fundo, todas as mulheres, naquilo que têm de mais sensual e de mais sexual – e embora nós sejamos homens.”

 

Suporte vital

Também têm o seu papel aqui, os homens: manipulando anonimamente as quatro marionetas que são outras tantas possibilidades de Anaïs Nin (a própria, observando a sua vida com a distância e a perturbação de uma voyeuse, de uma espectadora, de uma visita, mas também as outras: Bijou, a prostituta; June, a mulher da sua vida; e a andrógina, que como Anaïs se movimenta entre dois géneros), e contracenando com ela (Simão Luís, a única personagem masculina de Agapornis, é ao mesmo tempo Henry Miller e todos os outros homens que passaram por Anaïs Nin, incluindo o pai). “Foi o pai quem a levou a escrever, foi o Henry Miller quem a levou a continuar a escrever. Como mulher e como escritora, os homens foram para Anaïs Nin uma espécie de suporte vital. E também é esse o papel que têm neste espectáculo – uma papel que exige uma química que não vem de repente, uma disponibilidade para a descoberta. Ao mesmo tempo, o facto de não haver actrizes em cena resulta da nossa vontade de deixar que sejam as marionetas a organizar este universo: uma mulher aqui iria competir com a marioneta, e não seria justo”, argumentam.

Ainda que de tamanho natural, as mulheres-marioneta de Agapornis, criadas por Júlio Vanzeler, não se confundem com mulheres reais – são corpos mecânicos, articulados, sem sangue, sem saliva, sem suor. É por isso que o sexo aqui, apesar de explícito (textual e performativamente), não é puramente físico. “Nos textos dela, as imagens mais obscenas e mais chocantes adquirem uma poética incrível. Mais do que sobre sexo, a Anaïs Nin escreveu sobre o amor – mas sobre o amor com sexo, que no fundo é uma ideia quase contemporânea. À época, uma vida como a de Anaïs Nin era pecaminosa, grotesca; vista hoje, quase um século depois, é sobretudo uma vida muito libertina. Melhor, uma vida muito livre”, diz Rui Queiroz de Matos.

Agapornis fez-se com essa liberdade – a liberdade de quem “percorre os caminhos mais estranhos e mais perversos” e ao mesmo tempo paira acima disso tudo. Não sangram, não salivam, não suam, estas marionetas. Mas talvez já tenham matado e sejam serial-killers perigosos, como todos os amantes.

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