Amanda Knox: injustiçada ou psicopata?

Amanda Knox é o novo documentário sobre a misteriosa morte de Meredith Kercher. Ou como a morte da britânica se tornou a história de vida de Amanda Knox, culpada e absolvida pelo crime.

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Amanda Knox como se estivesse a falar connosco, uma escolha propositada dos realizadores DR/Netflix

“As pessoas adoram monstros e, por isso, quando têm oportunidade, querem vê-los.” A frase é de Amanda Knox, a norte-americana de 29 anos que continua a ser vista por muitos como um monstro ou a miúda que enganou toda a gente com o seu ar angelical. Knox, condenada e absolvida duas vezes pelo homicídio de Meredith Kercher, a sua colega de apartamento, em Itália, é o centro de um documentário que chega nesta sexta-feira ao Netflix. Rod Blackhurst e Brian McGinn são os realizadores do filme que não procura nem culpados nem inocentes. A dupla quer apenas lembrar-nos de que por trás de uma história, que ocupou páginas e páginas de jornais e horas e horas na televisão, estão pessoas como nós.

Tinha passado apenas um mês do regresso a casa de Amanda Knox, depois de quatro anos na prisão italiana de Capanne, em Perugia, quando Rod Blackhurst e Brian McGinn a abordaram com a ideia de um documentário que expusesse o seu lado da história. Ela recebeu os realizadores em Seattle, ouviu o que tinham a dizer e só lhes deu uma resposta dois anos depois.

Isto porque desde Novembro de 2007, quando Kercher foi encontrada morta, esfaqueada e violada, a vida de Knox mudou para nunca mais ser igual. O mediatismo do caso foi tal que se resumiu praticamente a si, mais do que à vítima. Ainda hoje é de Knox que se fala. Talvez por isso, a norte-americana tenha aceitado sentar-se em frente das câmaras de Blackhurst e McGinn, sem adereços ou fundos. Sozinha, recorda tudo o que se passou, como se nos olhasse nos olhos, como se falasse apenas para nós.

Ela sabe que a dúvida está instalada para sempre. Diz estar inocente, e foi assim que o Supremo Tribunal italiano a declarou em 2015, confirmando terem sido cometidos vários erros na recolha de provas, mas limpar oito anos de histórias mal contadas, como diz, não é uma tarefa fácil. Até porque a própria admite ter cometido inúmeros erros ao longo de todo o processo, começando desde logo por ter apresentado diferentes versões à polícia. Ora tinha estado em casa do seu então namorado, Rafaelle Sollecito – também ele condenado e absolvido duas vezes –, ora tinha estado em sua casa na noite do crime, contando até ter ouvido os gritos de Kercher e acusando falsamente de homicídio Patrick Lumumba, proprietário de um bar onde Knox trabalhou. Tudo funcionou em seu desfavor nos media, principalmente nos tablóides, que não abandonaram a história e publicaram notícias a um ritmo incomum até aí para um único caso.

Não é por acaso que Knox não é a única protagonista deste documentário. Blackhurst e McGinn têm mais três figuras fundamentais: Sollecito, o procurador italiano Giuliano Mignini que tornou a condenação de Knox e do seu namorado uma luta sua, e Nick Pisa, o jornalista britânico que cobriu o caso para o Daily Mail, tendo revelado várias histórias pessoais da norte-americana – Pisa chegou a publicar passagens do diário pessoal de Knox. Todos eles falam no filme, tal como Amanda Knox nos fala: sozinhos, numa espécie de cara a cara.

“O que tentámos fazer foi falar com cada uma das pessoas envolvidas, queríamos ouvir a sua versão da história. Abordámos a Amanda Knox da mesma maneira que abordámos Giuliano Mignini ou Nick Pisa. Queríamos ouvir as suas próprias palavras, em vez dos títulos que se escreveram”, começa por contar Rod Blackhurst, sentado à mesa de um hotel em Londres com jornalistas europeus. “Acho que um pouco por todo o mundo ficámos cativados pela história durante muito tempo. E o que sentimos foi que nunca ninguém falou muito, com as pessoas envolvidas, de um ponto de vista humano: afinal, como é que foi passar por este processo de oito anos?”, acrescenta Brian McGinn, explicando que o ponto de partida para o filme foi contar a história “a partir de dentro e não ao contrário, como aconteceu neste tempo todo”.

“Muita da história foi contada com base em conclusões de especialistas, pessoas que não estavam realmente envolvidas”, aponta. “Uma das coisas que mais nos orgulha no filme é que todas as pessoas que falaram connosco foram muito honestas. Acho que conseguimos criar um fórum para que estas pessoas falassem de forma aberta. Foi certamente interessante assistir ao descer da cortina.”

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Amanda Knox em 2010 à chegada ao tribunal para o seu primeiro recurso AFP

McGinn conta que a ideia para Amanda Knox surgiu quando a dupla percebeu que, apesar de todo o barulho em torno do caso, pouca informação existia sobre o que realmente se tinha passado. Mas admite que talvez esse tenha sido o pressuposto errado para começar o projecto. “Chegámos à história interessados nestas reviravoltas e no que aconteceu realmente, e no final estávamos a questionar-nos por que raio é que estávamos a fazer essa pergunta”, diz. “Esta é na verdade uma mudança fundamental na forma como olhamos para este tipo de histórias. Há pessoas reais envolvidas a sofrer consequências reais, em todos os lados desta história. Isso é algo que espero que as pessoas levem consigo do filme”, continua, com a esperança de que o público do documentário, que se estreou este mês no Festival de Toronto, deixe de perguntar também por culpados ou inocentes mas que não esqueça nunca a vítima, Meredith Kercher, a britânica de 21 anos que fazia Erasmus em Perugia.

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Meredith Kercher foi brutalmente assassinada Reuters

“Uma das coisas que se perderam na história é que houve uma vítima e que este foi um crime muito violento. Queríamos ser respeitosos em relação a isso, mas lembrar às pessoas como a conversa se afastou tanto disso”, defende Blackhurst, explicando a opção de chamar Nick Pisa, nome pouco consensual no caso. O jornalista foi acusado de manipular reportagens e foi um dos grandes responsáveis por Knox ter ficado conhecida por “Foxy Knoxy”: a miúda gira que não passa de uma manipuladora, mesquinha, desequilibrada com um apetite sexual voraz – uma das teorias para a morte de Kercher apontava para um jogo sexual entre ela, Knox e Sollecito, que teria ido longe demais.

“Olhando para o caso no seu todo, queríamos ter quem estava na base de tudo, e o Nick, correspondente em Itália, foi um dos primeiros jornalistas a estar no local. Ele era a pessoa de que precisávamos, seguiu a história desde o seu início”, explica o realizador.

No documentário, Nick Pisa nunca justifica a maioria das suas histórias polémicas, mas admite que a sede por títulos a toda a hora o motivou, culpando também os leitores que todos os dias queriam mais e mais detalhes. “Os media tiveram um grande impacto na forma como fomos conhecendo a história. A forma como foi disseminada, como nos foi contada... Tínhamos de incluir isso, porque moldou a forma como hoje vemos a história”, afirma Blackhurst, para rapidamente ser interrompido por McGinn.

“Estávamos interessados em analisar esta estranha relação entre este tipo de tragédias e a forma como se podem tornar entretenimento”, diz, fazendo a antítese com O Caso Spotlight, filme de Tom McCarthy sobre a equipa de jornalismo de investigação do Boston Globe que se vê a braços com um escândalo de pedofilia na Igreja Católica. Se no Boston Globe não houve uma única peça publicada até que cada detalhe da história estivesse confirmado, na morte de Kercher aconteceu exactamente o oposto.

É por isso que, ao longo do documentário, a cena do crime vai aparecendo várias vezes. O sangue espalhado pelo quarto de Kercher desvaloriza os detalhes mais sórdidos que foram escritos sobre Knox – os realizadores quiseram ter a família da britânica no documentário, mas nunca tiveram uma resposta. Mesmo depois de concluído o filme, fizeram-lhes chegar uma cópia, mas do lado de lá o silêncio continua a ser a opção.

Alguma coisa pode mudar com o filme? “O caso está decidido e isso é uma das melhores coisas de se fazer este filme em 2016. Já não há muitas dúvidas. As pessoas ainda falam do caso, mas o veredicto legal já está terminado”, diz em resposta ao PÚBLICO. “Já houve quatro veredictos. Esperamos que a conversa ultrapasse isso e se afaste até um bocado do caso”, acrescenta McGinn, com dúvidas de que Amanda Knox suscite as mesmas reacções da série documental Making a Murderer, sobre Steven Avery, actualmente a cumprir pena pelo homicídio da fotógrafa Teresa Albach em 2005 – a primeira temporada estreou-se no ano passado com pedidos de repetição de julgamento, obrigando até o Presidente Barack Obama a pronunciar-se sobre o assunto. “Ao contrário dessa, já toda a gente conhece a história de Amanda Knox.”

Até aqui, as críticas ao filme são positivas e unânimes: vamos repensar o caso ou, pelo menos, a forma como o julgámos. Às tantas, Amanda Knox diz-nos no filme: “É o pesadelo de qualquer pessoa. Ou sou uma psicopata na pele de um cordeiro ou sou como tu.”  

“O que a Amanda faz é apelar ao medo: qualquer pessoa pode encontrar-se naquela posição. Se calhar também é por isso que  histórias assim nos fascinam”, concluiu Brian McGinn. 

O PÚBLICO viajou a convite do Netflix

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