Amália nunca se acaba

Um livro e dois discos levam-nos a repensar a obra de Amália. Vítor Pavão dos Santos dedica-lhe um completíssimo tomo em que entrelaça a vida da fadista na sua; Amélia Muge grava um álbum que nos escancara a poesia escrita por Amália; Frederico Santiago recupera as primeiras gravações para a Valentim de Carvalho.

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Na poesia de Amália, argumenta o biógrafo Vítor Pavão dos Santos, há sempre amargura e morte
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Amália com Rui Valentim de Carvalho, que a grava pela primeira vez na loja da Rua Nova do Almada (e não, como até aqui se pensava, nos estúdios Abbey Road, em Londres)
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Amélia Muge aventurou-se a gravar os poemas de Amália

Vítor Pavão dos Santos nasceu em Lisboa numa altura em que, ainda adolescente, Amália Rodrigues cantava como amadora, em festas de bairro e em verbenas, enquanto ganhava para a sua sobrevivência embrulhando rebuçados e bolos numa fábrica da Pampulha ou vendendo fruta no Cais da Rocha do Conde de Óbidos. Num par de anos tudo mudaria. Logo na sua estreia no circuito profissional (Retiro da Severa, Junho de 1939), mal tinha ainda reportório que lhe permitisse tomar o “palco”, obteve não só o aval do mítico guitarrista Armandinho como conquistou os clientes da casa que, segundo conta Pavão dos Santos, largaram as mesas e se precipitaram para a cave onde Amália primeiro se fez ouvir. A ascensão foi meteórica a partir desse momento, mercê de um reconhecimento imediato de que o seu canto era sem paralelo e garantia salas a rebentar pelas costuras – um lugar privilegiado para lhe ouvir a voz tinha de ser muitas vezes conquistado à cotovelada.

Levado pelo seu pai, Pavão dos Santos viu-se preso por aquela presença magnética e uma voz que, justiça houvesse, deveria durar para sempre desde que lhe pôs os olhos e os ouvidos em cima, teria quatro ou cinco anos. A memória é-lhe clara: aconteceu no Restaurante Caramba, na Praça de Touros da Feira Popular, em Lisboa. Amália levava um vestido azul e cantou Carmencita, poema de Frederico de Brito. O impacto dessa epifania foi de tal ordem que o ex-director do Museu do Teatro diz “andar a fazer este livro desde os quatro ou cinco anos”. Chama-se Amália e os Poetas – O Fado da Tua Voz (Bertrand) e é o terceiro que Pavão dos Santos dedica a Amália. O primeiro, Amália – Uma Biografia (Contexto, 1987), é a obra fundamental para conhecer minimamente o percurso pessoal e artístico de uma das maiores figuras da música portuguesa do século XX, e obedece a um apagamento quase total do autor. Baseado em conversas que se prolongaram durante cinco anos, a biografia apresentava-se como um notável puzzle sempre em discurso directo, em que o papel de Pavão dos Santos era o de cosedor dos blocos de texto, de garante do ritmo narrativo e de uma fidelidade à fluidez oral da cantora que permitia sucessivos safanões cronológicos sem que daí resultasse um relato caótico. Amália lia-se como se ouvia.

Amália e os Poetas é, na verdade, uma outra forma de Pavão dos Santos contar a história de Amália Rodrigues, aprofundando a relação da cantora com as palavras dos outros e com as suas, mas usando-as igualmente como pretexto para contar a sua vida. Só que, agora, o autor implica-se totalmente no texto, torna-o uma narrativa íntima. “A certa altura estou um pouco a fazer as minhas memórias”, admite ao Ípsilon. E isto porque desde esse momento inaugural de arrebatamento, ainda criança, Pavão dos Santos passou a coleccionar obsessivamente todos os recortes de jornal em que surgia o nome da cantora e todas as letras das cantigas por ela interpretadas. Ao longo dos anos, foi construindo um generoso arquivo pessoal, ampliado pelas muitas horas de pesquisa na Biblioteca Nacional, peneirando as informações publicadas sobre Amália desde 1920. “É verdade que acabo por também me contar”, confirma. “Desde miúdo até me tornar íntimo – coisa que nunca pensei poder acontecer.” Pelo meio, vão assomando pequenas escapatórias, pontuando a relação próxima de Pavão dos Santos com o meio teatral, mas são meros desvios, com rápidas correcções de rumo – não apenas para o centro do seu livro mas também, depreende-se, para o centro da grande paixão da sua vida.


Os poetas cantados
Dividindo o livro por conjuntos de autores que ajudam a refazer a cronologia da carreira de Amália, Pavão dos Santos começa pelos poetas populares (em que destaca o espantoso João Linhares Barbosa) e por José Galhardo, principal autor para os fados orquestrados por Frederico Valério, reserva capítulos a poetas acidentais, aos autores brasileiros, à importância específica de Alberto Janes e a um “rondel de poetas” que dá a justa abrangência dos autores episódicos cantados por Amália: do rei D. Dinis a Carlos Paião, passando por Fernando Caldeira, cujo As penas, erradamente atribuído durante anos a Guerra Junqueiro, constitui a primeira ousadia de integração de um poema a que se pode chamar erudito. “Ela diz que viu o poema num jornal quando ia a caminho do Brasil”, relata Pavão dos Santos. “Mas com a Amália são sempre mistérios. Não sei se foi assim.”

A dúvida aqui reside na possibilidade de ter eventualmente escondido a sua fonte, demasiado “erudita” para aquilo que era esperado de uma cantadeira de fado. Mas o mistério, acrescenta o biógrafo, ronda também a forma como os poemas – Fria claridade, de Pedro Homem de Mello, por exemplo, em que o “presságio de Deus” escrito se tornou num “presságio de adeus” cantado – eram polidos ou limados por Amália. A fadista moldava os poemas quando achava que o sentido saía engrandecido e quando a extensão não se prestava à duração de um fado. “E os poetas achavam que como ela fazia ficava melhor”, diz Pavão dos Santos. “Ela tinha um talento inato para saber o que era a poesia que devia ser cantada.”

Homem de Mello faz parte do grupo a que Pavão dos Santos chama Poetas Dilectos – ao lado de Camões, David Mourão-Ferreira, Ary dos Santos ou, mais surpreendentemente, José Régio. De Régio, Amália cantou um único poema, Fado português, mas cola-se de forma tão imaculada ao entendimento que a fadista fazia da sua canção que o autor fez questão de o singularizar. “Aquilo que o Régio dizia do fado era o que a Amália achava que era o fado. Havia as teorias de que tinha vindo do Brasil, e ela achava que se tinha simplesmente encontrado o fado." Na estrofe inaugural, “O fado nasceu um dia/ Quando o vento mal bulia/ E o céu o mar prolongava/ Na amurada dum veleiro/ No peito dum marinheiro/ Que estando triste, cantava”, Amália descobria a entrada perfeita para o seu dicionário pessoal. Também esse poema havia de ser reduzido para lhe caber na voz, com o beneplácito de Régio.

Amália no Chiado
A estrutura de Amália e os Poetas respeita a ideia esboçada e afinada durante décadas por Pavão dos Santos, mas, em fase já avançada, o autor seria “obrigado” a rever todo o seu material à luz das informações que Frederico Santiago – membro do Coro do Teatro Nacional de São Carlos e igualmente coleccionador e investigador compulsivo da obra de Amália desde que a ouviu, aos 15 anos, cantar Cansaço na televisão – lhe ia trazendo das suas horas a vasculhar o arquivo da Valentim de Carvalho (VC). Pavão dos Santos “tinha as letras todas que estavam editadas, mas depois começaram a aparecer essas outras que estavam ignoradas, lá nos arquivos da VC, e o livro começou a ficar diferente”. “Não sabia que a Amália tinha gravado o Garrett, o Mário de Sá-Carneiro, muitas marchas, antigas cantigas dos filmes portugueses – tanta coisa que aparece e que está por lá escondida.”

O acesso de Frederico Santiago aos arquivos da VC iniciou-se há meia dúzia de anos, após procurar “um pouco insolentemente”, confessa o próprio, o então administrador da EMI em Portugal, David Ferreira. O que movia Santiago era não apenas a paixão que o acometera aos 15 anos, a certeza de que Amália “não era só mais uma fadista”, mas também a sua dificuldade em compreender como uma figura daquela grandeza não merecia o mesmo tratamento que qualquer grande diva da canção mundial, permitindo espreitar para lá dos discos, ouvindo outros registos que tivessem ficado por editar. Era essa curiosidade acerca do contexto em que as gravações tinham acontecido e a vontade de fantasiar com dados mais completos sobre a forma como determinada obra-prima fora alcançada que o moviam. “Agora, sempre que faço um disco da Amália, faço-o como se fosse para mim”, diz ao Ípsilon. Depois de David Ferreira o ter incluído na primorosa reedição de Com que Voz, em 2010, foi continuando a esgravatar, guiado pelo seu ouvido que infalivelmente lhe dizia que, entre o material publicado no álbum Rara e Inédita, haveria gravações anteriores às realizadas por Amália em 1952 no estúdio londrino de Abbey Road, até há pouco tidas como as primeiras da fadista para a VC.

Esse redesenho do mapa cronológico das gravações, confirmou-o depois ao encontrar “um acetato para audição imediata datado de Junho de 1951, o que prova que é anterior”. “Quando vi que na bobine onde estavam esses temas havia muitos mais, percebi logo que dava um grande disco da Amália”, declara. Lançado esta semana, Amália no Chiado regista as primeiras gravações para a VC, na loja da Rua Nova do Almada. “Este é o disco do encontro dela com o Rui Valentim de Carvalho e com o Hugo Ribeiro”, diz ainda Santiago, frisando a importância do documento. Ribeiro, nunca será demais dizê-lo, foi sempre o único técnico capaz de captar a voz de Amália no seu estado natural, substituindo a artificialidade dos compressores que ordenavam os mandamentos técnicos do estrangeiro pela sua inventividade (usava um microfone falso para o qual Amália cantava enquanto captava a voz noutros dois pontos da sala).

Uma vez que as folhas de gravação não foram guardadas junto com o arquivo, situado em Paço d’Arcos, arderam no grande incêndio do Chiado de 1988, dificultando a tarefa de recuperar com rigor este material que ficou no esquecimento praticamente desde a sua utilização original em discos de 78 rotações, em 1951. Frederico Santiago recorreu, por isso, à clarividência de Joel Pina, viola-baixo que acompanhou Amália, para que fosse o seu ouvido a destrinçar as notas na guitarra de Raul Nery ou Jaime Santos, conseguindo, depois, perceber a lógica de sessão em que os temas se encontravam divididos. A investigação de Pavão dos Santos para o seu livro ajudou a recuperar as autorias dos temas, essencial para identificar Fado lamentos, inédito em disco, registado numa outra versão anterior para um complemento cinematográfico realizado por Augusto Fraga em 1947.

Amália cantada
Foi esse mesmo Fado lamentos que deixou Pavão dos Santos em sobressalto numa ida ao cinema em 1948, ao perceber no programa que eram os primeiros versos de Amália de que havia notícia. É à produção poética da própria fadista que dedica o último capítulo do novo livro, assim a descrevendo: “Na poesia dela há sempre amargura – mesmo nos momentos alegres –, há sempre uma noção da morte, de que as coisas são passageiras.”

Foi justamente esse o aviso de José Mário Branco quando Amélia Muge o convidou a juntar-se à equipa que com ela criou o também acabado de lançar Amélia com Versos de Amália: “Atenção, olha que com a Amália vamos ter um trabalho muito sombrio." Depois de desafiada pela actriz e poetisa Manuela de Freitas a gravar um disco composto integralmente por poemas de Amália, Amélia voltou-se para o livro Versos, que Pavão dos Santos convenceu a fadista a publicar em 1997. Excluindo (com uma só excepção) poemas que já tivessem sido cantados pela própria, a cantora tentou então escapar à inevitabilidade anunciada por José Mário. “Eu também tenho um lado muito trágico”, admite Amélia, “mas sobreponho sempre a isso uma intensa vontade de proclamar, burilar e educar a alegria. Mas há também aqui versos, sobretudo os ligados ao bestiário tradicional, das carochas e dos mosquitos, que demonstram a capacidade que ela tem de desconstruir a tristeza. Foi por aí que senti que tinha o meu papel neste trabalho. Sempre vi a Amália como um ser muito luminoso. Se sofrer intensamente é das coisas mais profundas, é também das que mais nos ligam ao estar vivo.”

Repelindo as sombras, Amélia Muge reclama então uma forma de despir as palavras até um ponto em que estas doam – “As palavras são muito profundas porque são corpo ainda, são muito placentares”, analisa. Por isso, a preocupação foi evitar descerrar quaisquer cortinas frente aos versos, para poder estimular nos ouvintes a reacção “a Amália escreveu isto?!”. Um dos factores de sedução de Amélia é descobrir nestes poemas a “herdeira de uma tradição popular, ao mesmo tempo trazendo já algumas marcas eruditas na maneira como faz e desfaz os sentidos”. Curiosamente, inibia-me mais pensar em musicar a Amália do que o Fernando Pessoa.” Só que, ao empurrão dado por Manuela de Freitas, Amélia juntou um agradecimento ao fado e aos fadistas de que se tem aproximado desde que Mísia a instou a contribuir com duas composições para as suas Paixões Diagonais: Mafalda Arnauth, Ana Moura ou Camané. "Se estou viva e faço o que faço”, sublinha, “devo-o sempre a alguém”.

Citando Pavão dos Santos no booklet do disco, Amélia diz-se inspirada em primeiro lugar por esse “amor, esse sentido de responsabilidade, de maravilha, que não se impõe, antes vem por via do gostar e do querer partilhar com os outros”. Esse amor, entenda-se, de Pavão dos Santos por Amália. O amor de uma vida. Pessoal e transmissível.

 

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