Ai de quem não tiver imaginação

Hélia Correia junta 11 contos onde as mulheres são personagens centrais de universos grotescos onde o mal e o bem são quase indistintos. Se houver salvação, será na literatura

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Hélia Correia Enric Vives-Rubio

São quase sempre mulheres. Um feminino grotesco, perto da terra, num tempo que não se vê. Mulheres encantadas, aleijadas, marcadas por fatalidades, longe do sonho e apanhadas em cada uma das histórias como a meio de um caminho, com os homens aparecem quase sempre a sublinhar a identidade desse feminino trágico. E sempre a sensação de se estar a meio de um percurso que é deixado em aberto. Nos 11 contos que a escritora Hélia Correia (n. 1949) juntou em Vinte Degraus, o princípio e o fim de cada um vive num sem tempo narrativo. O tempo é onde começa a leitura? Não se nota o início, como se as personagens já entrassem maduras, completas na sua complexidade, e o papel do leitor fosse segui-las num breve período, decisivo para apreender o sentido dessas vidas ficcionadas, como se atraído por um turbilhão.

Quem conhece a escrita de Hélia Correia, sabe da sua eficaz capacidade de efabular o mal, de transformar a dor ou a provação numa vertigem a que se torna impossível resistir. Personagens e leitor deixam-se ir nessa urgência. Lilias Fraser (2001) e Adoecer (2010) são as provas máximas dessa escrita cheia de silêncios que sublinham o desespero, capaz de entrar numa intimidade dilacerada e revelá-la sem que nunca se sinta uma intrusão. Delicadamente, o leitor avança no mundo brutal e incómodo como se isso fosse um prazer. Porque a escrita de Hélia tem essa faculdade. A da sedução. Aqui, não é muito diferente.

Laura, a rapariga inadaptada ao casamento no conto A Captura (escrito a partir de A Imitação da Rosa, de Clarice Lispector, e o segundo deste volume), não é dona do seu destino. Entregou-se a ele sem remédio, mas é incapaz de o cumprir, de ser mãe. Outra vez a doença, metáfora do mal. “O mal, para a medicina, é um defeito no funcionamento do organismo. A ciência não quer reconhecer que o mal não é matéria: somos nós. Nós, o não dito. Nós, o não narrado. O inqualificável. Nós que havíamos levado Laura, a verdadeira, para os lugares em que ainda não existe o indivíduo.”

Laura só é diferente de Rosa, a protagonista de Vinte Degraus, conto que dá nome ao livro, na entrega ao trágico pela sua passividade e berço de ouro. “Ela nascera para lá dos montes, onde as mulheres começavam a ser feias. As do lado do mar sorviam toda a luz que Deus tornara disponível, recobriam os olhos e a cabeça com o azul e o ouro dessa luz.” Chamaram-lhe Rosa e ela agarrou-se ao nome como a única coisa bela. Nasceu pobre e coxa e a tia vendeu-a a um homem que passou e a levou para um bordel ainda mais pobre mas longe da miséria do campo. Ela viu essa tarefa como natural, num mundo grotesco, onde todos eram aleijados. Nada de mais para ela que só se aborrecia com a tranquilidade e concebeu Deus à sua imagem. Deus faz os aleijados “só porque se sente enfastiado” e faz tudo para se entreter.

Rosa, Laura, Fátima, “a que tinha a liberdade no vestido” mas sabia que uma mulher não voa e está condenada ao prosaico; a velha a quem “a natureza arreganhava os dentes; Bárbara, a que teve um nome “em memória de um raio”; Sandra a prostituta a quem os clientes pediam um abatimento e ela via no pedido matéria para argumentação com outro tipo de gozo. “Abatimento é estar a gente em baixo.” Todas são mulheres feitas em nome da literatura, como os homens que as acompanham, como o que nasceu a Sul e se habituou aos enforcados, ou Hélder e Djalme, dois estudantes numa paisagem de mar marcada pela Grécia e deuses pagãos, onde Alexandra, a grega, “aquela que protege”, chega carregada da simbologia das histórias que se habitou a ver passar.

O que se cumpre aqui, nestas narrativas onde a acção quase sempre se intui? O último conto, A Dama Singular, talvez encerre, ou encene, uma tentativa de resposta. Ela, a dama, é a literatura, a que pode salvar, como acredita quem ensina uma menina a ler e a escrever até ela aprender a estar “enclausurada na beleza” e a sair dali pela imaginação”. É a dama que ouve na voz da rapariga do campo o desespero de quem não sabe o que isso é, a tal capacidade de verbalizar o que consome por dentro. “As raparigas da aldeia já nasciam com a ciência que as diferenciava, uma ciência inútil e até mesmo com certo efeito de malignidade. A natureza havia-as escolhido como interlocutoras e falava-lhes. Uma abundância de linguagens ascendia pelos pés achatados, pelas pernas, pelos vestidos mal amainados. Dor e cansaço, ordinarice e júbilo, a grande queixa, o aparelho vivo de tudo o que era nervo e digestão, plantas e animais — as pedras não, mas o que nelas — e, tudo o que a memória das águas conservava…” Não lhes deu a capacidade de lidar, através das palavras, “com a angústia da própria vida”. E isso pode enlouquecer.

Fecha-se o livro e o que fica é a sensação de que ainda há algo por se cumprir. A linguagem é capaz de quase tudo. Hélia Correia domina-a como poucos escritores da língua portuguesa. Há o incómodo, o que perturba e questiona, mas sabe-se do fulgor da sua escrita em romance. E é inevitável a comparação com esse deslumbramento da escrita com maior folgo, a cavalgada para o abismo. Sente-se por momentos nestes contos, faz parte da marca de Hélia Correia. Mas que bom seria agora um romance.

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