Ah, a poesia!

Há um célebre ensaio do linguista russo Roman Jakobson, que fugiu para o Ocidente em 1939, intitulado A geração que delapidou os seus poetas. Essa geração delapidada, pelo assassínio ou pela perseguição que levou ao suicídio, é a de Blok, Essenine, Maiakovski, Mandelstam. A mulher deste último conta nas suas memórias que, uma vez em que se lamentava diante do marido, este lhe respondeu: “De que nos podemos queixar? Em nenhum outro sítio se dá tanta importância à poesia, até se mata por causa dela.” A ampliação, de ano para ano, das manifestações públicas para festejar o Dia Mundial da Poesia é um sintoma (atenção: um sintoma, não uma causa) de que se chegou a um ponto crítico da delapidação da poesia, não sob a forma da violência exercida por um inimigo exterior, bem identificado, mas sob a forma do desastre sereno vindo de tantos lados e impossível de localizar com precisão: é como o tempo que faz, o tempo meteorológico. Estas bem-intencionadas manifestações em sua honra são de facto um sintoma de que a poesia caminha para a museificação, mas perdeu efectualidade social e já nada conta na economia do livro. A esta contingência respondem alguns poetas mais foliões fazendo de jograis intermitentes no palácio quando chega a Primavera. É essa miséria real que a importância simbólica tenta compensar. Na nossa época prosperou a “cultura”, e quanto mais espaço ocupa a cultura, menos espaço há para o que a ela oferece resistência: por exemplo, a poesia. É verdade que há mais de dois séculos que se coloca a questão do destino da poesia e do “para quê, poetas?”; e que a “situação da poesia” se tornou objecto de uma reflexão recorrente. Mas a resposta mais comum foi a de denunciar as “imposturas da poesia”, a de combatê-la, mais do que venerá-la. Afinal, os seus inimigos — ou, pelo menos, os que sentiram a necessidade de usar a retórica da inimizade — garantiram-lhe uma sobrevivência face à qual o discurso da defesa e da celebração parece uma oração fúnebre, entoada com devoção pietista. No plano editorial, já há muito tempo que a poesia sucumbiu a esta regra paradoxal, formulada em tempos pelo poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger: “Há mais poemas a serem escritos do que a serem lidos, a poesia é o único medium de massa em que o número de produtores ultrapassa o dos consumidores.” Por isso, em todo o lado ela tem sido progressivamente abandonada pelas grandes editoras, e a literatura reduz-se cada vez mais ao romance, ou melhor, a um género a que já se chamou “pós-literatura” e que faz do romance um instrumento de dominação. Entre nós, a edição de livros de poesia mudou claramente de regime e está hoje maioritariamente por conta de pequeníssimas editoras, criadas ad-hoc e conformadas a um círculo restrito. Foi uma resposta digna e necessária à diminuição tanto do espaço editorial tradicional como da rede de distribuição e comercialização dos livros. Mas este sistema também engendrou um lado negativo que é hoje perceptível: a proliferação imoderada e imprudente de pequeníssimos livros ou plaquettes, que os devotos do círculo de onde eles nascem querem que circulem como relíquias, mas que o leitor, habitando um mundo profano e sem espírito de coleccionador ou de caçador, gostaria que fossem mais nutridos, mais volumosos, e sobretudo que não fosse tão evidente uma perigosa inclinação para a autocomplacência editorial, que arrasta outras complacências. Sabemos muito bem que a poesia é ultra-minoritária. Às razões externas que determinam essa condição, não convém acrescentar razões internas.

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