Agora sou azeiteiro

Dan Snaith cansou-se de fazer electrónica inteligente. Our Love, o disco mais recente, usa todos os truques da electrónica dançável de mau gosto. Para seu azar, continua a ser muito bom e mais esperto do que ele queria.

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Façam o que quiserem com a música de Caribou que ele não se importa, só não a usem como banda-sonora para o mamading – isso deixa-o enojado e branco.

Bem, branco ele já o é, tendo o aspecto mais oposto possível ao de uma estrela pop: camisa banal de cor desbotada, calçonitos não propriamente garridos, óculos de aros gigantescos e uma timidez mais expectável em alguém que se dedica à caça de borboletas que num homem que arrasa multidões. Quis o destino que nos encontrássemos com Dan Snaith, o homem que assina os discos como Caribou, nos bastidores do festival Alive, naquela altura pré-verão em que se soube que numa daquelas terras em Espanha onde os britânicos vão para perder a cabeça, uma moça – aparentemente educada de forma católica – ganhara um concurso num bar (o prémio sendo um cocktail chamado Vacation, que ela pensou referir-se a férias gratuitas e não uma bebida) após ser a fêmea presente no local que executou sexo oral (mal amanhado, diga-se) a mais homens. Isto é o género de comportamentos que não associamos à música de Caribou. Até Sun, o single de Swim, o último disco, de 2010.

Estávamos a tentar explicar a Snaith a nossa surpresa com a, por assim dizer, leveza de Our Love, a sua mais recente obra – uma dezena de canções que não temem o azeite, a melodia fácil, a batida simples em 4/4, as teclas house, enfim, tudo aquilo que este metódico mestre das electrónicas foi rejeitando ao longo dos anos, nos seus discos sempre complexos.
“Qualquer diz a tua música ainda acaba naqueles locais de veraneio onde as pessoas vão encharcar-se de álcool e ecstay”, dissemos-lhe.
“Mas isso já aconteceu”, respondeu Snaith, um pouquinho avermelhado nas bochechas, à conta do sol. “Soube que o Sun [magnífico single de Swim] começou a ser usado para acabar as noites em Ibiza. Nunca esperei tal coisa. A minha música num sítio assim”.

E foi aqui que lhe dissemos que o próximo passo seria Our Love funcionar como banda-sonora para os mamadings deste mundo e ele enojou-se e qualificou o caso como degradante e fez um discurso pró-feminista que só lhe fica bem.
Snaith não aparenta ser o tipo de homem que se zanga muitas vezes – é demasiado pacato e silencioso para isso, mas quando soube que um single seu fizera êxito ficou “bastante chateado”. “Eu faço um determinado tipo de música, que é ouvida por determinado tipo de pessoas, não são exactamente canções para o hedonismo total e desbragado”, confessa, antes de introduzir um mas que inverte o argumento.
“Mas depois, com tempo, percebi que não tenho controlo algum sobre quem ouve, nem sobre as razões que levam as pessoas a ouvir a minha música, nem sobre os contextos. Tenho de deixar ir e aceitar. Quem sou eu para determinar o quê?”

É bem pensado da parte de Snaith, não querer controlar nada. Porque há um tema em Our Love, chamado Can't do without you, que é chapadinho êxito de pista de dança manhosa: batida 4/4, teclas house fatelas, voz a repetir a frase que dá o nome à canção, crescendo com batida mais marcada e mais crescendo e mais crescendo, tudo no limiar do bom gosto.
Terá então Snaith descoberto que no fundo não é um matemático que faz electrónica esquisita, mas antes um produtor de êxitos?
“Não, o que se passou é que a minha abordagem à música mudou. A partir do momento em que percebi que não posso controlar nada, que a única coisa que posso fazer é agradar à minha alma, a minha abordagem à música mudou”.
Mudar é, neste caso, largar a auto-consciência. Esquecer o que vai acontecer à canção. Não pensar se está a ser parolo ao pôr estas ou aquelas teclas. “Eu costuma estar muito atento ao processo de compor, sempre a vigiar-me. E com este disco pude apreciar o processo, o simples facto de me divertir, pude apreciar ver o que acontece a uma canção, apreciar ver onde ela vai acabar depois de lhe pôr tudo o que me lembrei de pôr”.

Umas horas mais tarde Snaith encheria a tenda secundária do Alive, com uns milhares (dois, três, não mais que isso) em êxtase aos pulos perante o que eram maioritariamente temas do novo álbum. Mesmo os antigos adquiriram uma tonalidade mais imediata e dançável. Talvez ele queira fazer dinheiro com as pistas de dança. Talvez já não queria saber.
“Eu costumava ser muito snob”, admite Snaith, depois de se recompor da história do mamding, que o deixou abananado uma boa dúzia de minutos. “E de repente apercebi-me da falta que me fazia não estar sempre a controlar. Por isso, para este disco, e desde o primeiro minuto, fiz tudo o que me apeteceu, sem reflectir, sem ponderar”.

Têm de perceber: este moço é doutorado em matemática. A música – a distância entre as notas, o momento em que uma percussão entra – é traduzível em relações matemáticas. Fazer uma batida 4/4, o vulgar tum-tum-tum-tum “não representava qualquer tipo de desafio” para Snaith. Até que ele notou que “há imensas coisas que podes fazer com a mais básica das batidas”.
“Eu costumava pôr propositadamente um qualquer elemento percussivo fora do tempo mais óbvio, ou uma nota inesperada, ou uma dissonância, de propósito para ser desafiante, para não ser óbvio, para afastar quem ouve electrónica generalista”.

O senhor doutor Snaith cansou-se, enfim, do seu próprio cérebro. Cansou-se de “fazer ovos Fabergé, perfeitos, intocáveis”. Quis abraçar o lixo, o parolo, o imediato, o óbvio, o luxuriante, o suado, o sexual – mas não o mamading, claro.

“Vou ser honesto”, diz, cruzando a perna, e com um mínimo de excitação na voz. Snaith, note-se, tem a capacidade expressiva de uma criança tímida no primeiro dia de aulas: sempre mais ao menos encolhido sobre si mesmo, sempre com os olhinhos piscos a mirarem, desconfiados o interlocutor. Volta e meia, particularmente quando fala estritamente de música e os seus processos de composição, a voz denota um pequeno entusiasmo. “Desta vez pensei o que as pessoas iriam achar quando estivessem a ouvir. Queria muito que à décima audição não houvesse cansaço. Queria que não conseguissem parar de ouvir”.
Nesse aspecto ele está com sorte: uma faixa como a que dá o nome ao disco tem tanta coisa a acontecer (um imaculado beat com pratos-de-choque, uma linha de baixo sintetizada, simples e eficaz, palmas, um arranjo de cordas sintetizadas) que são de facto precisas duas mão cheias de audições para atentarmos em cada elemento.

Convém aqui esclarecer um detalhe: é verdade que Snaith usa tudo aquilo que se tornou cliché na pior música de discoteca: as linhas de baixo sintetizadas, as batidas óbvias, aquelas teclas house que vão ficando cada vez mais altas até às pessoas porem as mãos no ar e gritarem muito no pico da canção, etc. A mais valia dele, no entanto, é a forma como combina estes elementos, os baralha, inclui qualquer coisa de inesperado, e, acima de tudo, a noção exacta de quando e como incluir cada elemento. Dá vontade de vestir uns calções, umas chinelas, uma camisola de alças, ir até Ibiza e ficar a pé até às seis da manhã.

“Claro que esta conversa de fazer o que quisesse e não pensar no que estava a fazer... Nunca é completamente assim”, admite. “Mudei coisas mil vezes, tirei daqui, pus dali. Porque o que eu queria era que estas canções soassem naturais, lúdicas. E nem sempre a primeira coisa que te sai é lúdica. Em particular comigo”.

Há uma década, admite, nunca faria uma batida 4/4, pela simples razão de que “toda a gente já o fez”. Mas olhando agora com mais calma para a sua obra, Snaith considera que “às vezes a música é menos honesta se sobre-complicares. Porque estás a complicar apenas porque o teu ego tem a necessidade de te sentires especial. E podes correr o risco de achar que és especial só porque não repetes o que os outros fazem”. Feita esta introspecção (ele não consegue evitar) Snaith conclui que “fazer o que os outros fazem, se te souber bem – não há nada de errado nisso”.

“Uma boa parte de querer ser inovador ou complexo reside no teu ego”, continua. “Porque não estás totalmente confiante nas tuas capacidades fazes algo complicado, difícil, que serve de caução à tua música. E aqui eu quis desaparecer, retirar as marcas de autor e simplesmente seguir com tudo o que me agradava”.

O autor de Swim está feliz, por estes dias. Regala-se na contradição que está no cerne do disco: “Agora canto. Mas filtro a minha voz, porque não gosto dela. É engraçado, não é? Quis fazer um disco em que fosse eu próprio, sem filtros nem voltinhas nem truques espertos e para conseguir isso tenho de alterar a minha voz”. Se Rimbaud fosse um DJ possivelmente também diria coisas destas, pensamos.

“Queres ser tu, queres que as pessoas saibam como tu és, mas acabas por apresentar uma versão filtrada de ti”, diz Snaith, que apesar de se levantar cedo parece ter acordado tarde para uma coisa chamada super-ego.

Ninguém sabe o que acontecerá aos verões em Ibiza, mas é certo que “nos próximos quatro anos não haverá mais música de Caribou”. Para já ele está a ter prazer em tocar ao vivo e pôr as pessoas a dançar. Tem toda a confiança na eficácia da sua música porque não incluiu no álbum “nada que a minha mulher não gostasse”.
“Eu não tomo drogas nem bebo, mas ela sim. É a minha primeira ouvinte e foi ela que me fez começar a rir-me de mim próprio. Não parece mas eu gozo mais comigo próprio do que as pessoas pensan”, diz Snaith. Com cara séria e um disco parolo na bagagem.

 

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