Agora é sempre a subir

Aos 40 anos Carlos Nobre, que no tempo dos Da Weasel era conhecido por Pacman, tornou-se oficialmente Carlão, o nome pelo qual sempre o trataram. Às vezes demora a um tipo ser quem é. Quarenta, o disco de estreia, é muita coisa.

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Nele convive o pai babado, o admirador de mulheres, o romântico, o boémio, o tipo frágil que se pode perder DR

Se há coisa que Carlos Nobre aprendeu nos últimos quatro anos, é que precisa de “ter um ritmo de trabalho fixe”, porque “se não estiver a trabalhar não [está] bem”.

Não é assunto de somenos na sua vida – a ponto de, após andar à procura das palavras exactas, repetir a ideia de novo, mas desta feita com um remate mais esclarecedor: “Ya, preciso de estar sempre a fazer coisas, a bem da minha sanidade mental”.

Carlão não é apenas um homem de palavras; é um homem de palavra. De modo que quando diz que precisa de estar a trabalhar para a cabeça não avariar, está a falar a sério: desde o fim dos Da Weasel já lançou, sob o nome Algodão, dois discos – Uma Falaciosa Noção de Intimidade e A Gramática da Paixão Dramática – supostamente de spoken-word, pese embora fossem os objectos musicalmente mais estranhos em que alguma vez participou; e, pelo meio, criou Os Dias de Raiva, uma “banda punk metal hardcore” que “para a maioria das pessoas era uma coisa anacrónica”. Nada que o desmotivasse: “Ainda fizemos dois discos”.

Mas de certa maneira, é só agora que ele se estreia a solo, com Quarenta, assinado por um tal Carlão. Quando Os Dias de Raiva apareceram, algumas notícias chamavam a Carlão Pacman, o nome que usava enquanto MC nos Da Weasel; outros optavam pelo seu nome de nascença, Carlos Nobre. Mas Carlão é Carlão, sempre o foi para os amigos, e o simples facto de assumir essa alcunha carinhosa dá-nos a entender que ele está, pela primeira vez, a oferecer ao público a pele em que se sente melhor.

Podemos chamar a Quarenta um disco de hip-hop: o hip-hop está presente, como sempre esteve na história de Carlão – pese embora o rapper faça questão de notar que “não [s]e consider[a] estritamente um produto do hip-hop”, tem consciência de “que isso está na [sua] história”. Mas há muito r'n'b, uma espécie de kuduro lento em Os tais (com uma óptima linha de sintetizador) e mesmo uma faixa à guitarra acústica, Blá, blá, blá, escrita por Sara Tavares e cantada a meias com ela, que cai ali como que vinda do nada.

“Eu até queria dois temas acústicos”, confessa Carlão. “Aquilo é um tema da Sara, que ela me convidou para fazer. Já andávamos a cantá-la há algum tempo e quando este disco surgiu perguntei-lhe se podia usar a faixa. Ela foi bacana: como não sabia quando ia sair o dela deixou. Soa um bocado fora – se houvesse mais um tema acústico não soaria assim tão fora. Mas eu gosto de coisas fora. Como gosto do Outra casa, outra coisa. Pá, a verdade é que enquanto consumidor e autor, canso-me muito rapidamente das coisas. Preciso de dinâmicas diferentes para manter o interesse num disco”.

Outra casa, outra coisa é outro universo – e provavelmente a razão pela qual a promoção do álbum nomeia Quarenta como “o registo autobiográfico” de Carlão. É uma espécie de r'n'b com beat minimal e teclas delicadas, que não ficaria mal num disco de Frank Ocean – mas ouça-se com atenção a letra e percebe-se o pathos: numa linha ouve-se “as coisas serpenteiam/ não devia ser preciso agarrarmo-nos a elas/ sofregamente”; noutra ouvimos: “a minha única casa a não conhecer/ o cheiro do caramelo/ que serpenteia num imenso mar de prata”.

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O detalhe do cheiro e da prata dizem, a quem não viveu fechado em casa, tudo o que é preciso dizer, sem ser explícito. Valha a verdade, isto “não é assim tão mais auto-biográfico” do que outras coisas que já escreveu: “Acho que nesse campo já fiz coisas muito mais intensas”, diz. Ele admite que é um disco em que se expõe e põe uma hipótese que faz sentido: “Talvez por não haver muita gente a tocar nesses temas, achem que é muito autobiográfico. Lembras-te daquele tema dos Xutos, que a malta dizia que era sobre o Sócrates? Para mim é óbvio que isso só aconteceu porque mais ninguém trata desses temas”.

Isto é uma forma educada de dizer que em Portugal há uma certa dificuldade em falar claro. “O rebuscado”, diz, “não é a minha cena”. Carlão até dá de barato que “para muita gente serei básico”, embora saiba que há nisso uma certa dose de preconceito – ninguém foi dizer a Mick Jagger que I can't get no satisfaction não é propriamente Yeats. Não é suposto ser. Mas um tuga a cantar palavras simples? É sempre um drama.

De certo modo Carlão fez o mesmo que Nick Cave, que quando decidiu ser um pai limpo arranjou um escritório e passou a escrever canções das nove às cinco. “Depois do fim dos Da Weasel”, conta Carlão, “a ideia era bulir mesmo a sério nas letras e na música e nos últimos anos consegui produzir de forma mais constante”. Tal como Cave, Carlão tem um lugar, “meio estúdio, meio escritório”, onde escreve. A escrita é o seu grande amor.

“Há uma coisa que para mim é importante: a minha música pode ser difícil de etiquetar, mas se há gaveta em que as pessoas me podem meter é a de escritor de letras – e aí sei que já tenho um espaço meu”. Ele exemplifica uma vez: “Há pessoas que não ligam aos instrumentais das minhas canções, mas gostam do que eu escrevo”; e depois segunda: “O Chico Buarque, que eu adoro, é dos poucos gajos em que gosto quase sempre da música e da letra e da voz; mas há para aí uns 20 por cento de temas que não me dizem grande merda só que a letra toca-me muito”. Faz uma pausa e atira: “Espero que comigo isso não aconteça muito, porque também quero que as pessoas gramem do instrumental”.

Os instrumentais de Quarenta foram cedidos por uma série de produtores – um dos quais Fred, com quem já trabalhara n'Os Dias de Raiva e nos 5:30, o projecto em que, no ano passado, os dois se juntavam a Regula e (embora oficialmente ele não fizesse parte do grupo) a Sam The Kid. Lembram-se do soberbo Pitas querem guito? Eram eles.

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Até se enfiar nos 5:30, Carlão andava sem vontade de rimar. “Pus o rap um bocado de parte porque era demasiado preso a Da Weasel, que duraram 16 anos. Cansei-me um bocado dessa vida, sempre na estrada a rimar – cansei-me do próprio género”.

Mesmo em 5:30 não era suposto ele rimar. “Foi quando chegou a altura de gravar o Vício, que foi o 2º single, que tudo mudou: a minha ideia era fazer uma cena mais cantada, sem ser um cantor a sério, e o Regula fazia as partes rimadas. Mas o Sam e o Regula foderam-me para rimar e depois do o fazer e do êxito que tivemos recuperei essa vontade”.

Para imaginar a pica que Carlão sentiu ao voltar a rimar basta pensar que Quarenta foi “todo feito depois de 5: 30. Bateu-me uma vontade de fazer isto e quando bate é de fazer”, explica. “Tenho feito sempre o que me faz sentido fazer no momento, sigo sempre o meu instinto. É só mais um disco feito porque me deu na cabeça fazer”.

Ele não está a exagerar: em miúdo passou a adolescência “a tocar o baixo em bandas hardcore”. Os próprios Da Weasel começaram como uma locomotiva imparável e acabaram na pop perfeita de Retratamento. Algodão, um projecto de spoken-word, tem mais música e mais imaginativa que o grosso da produção pop. E Quarenta está cheio de temas r'n'b ou mesmo faixas electro-chunga, como Nós – de que ele sai por cima porque a sua voz e a sua dicção já alcançaram aquele tom de autoridade que só a idade traz.

“Há para aí cinco pessoas que gostam de tudo” o que Carlão faz, diz, a dada altura. Ele já anda neste jogo há tempo suficiente para não se preocupar demasiado com a sua imagem ou com a forma como as pessoas o percepcionam: “Há quem goste do meu lado rimado e há quem goste que eu cante e há quem goste da spoken-word. Eu gosto de tudo e vou fazendo consoante a minha vontade e inspiração do momento”. Não há ilusões: “Não espero que as pessoas percepcionem o todo do que eu sou. Desde que gostem de alguma coisa, porreiro”.

Ainda assim ele admite que Quarenta talvez esteja “mais próximo do Carlão que a maior parte das pessoas gostam mais”. Se assim for, vão ter uma surpresa, porque este Carlão está mais próximo do r'n'b que do hip-hop. Os primeiro cinco temas (incluindo a Intro) abrem o álbum em grande forma: grande rapanço na Intro, enorme conjugação de beat e coros em Entre o céu e a terra e a rima admirável de Krioula (com Sara Tavares) trabalhada em auto-tune: “krioula, tu és bem vinda entras as mulheres/ o teu rabo levita/ e parece que levanta halteres”.

Tudo isto são pontos altos, culminando no grower de Outra casa, outra coisa, que precisa de tempo para entrar: à primeira aquelas teclas sedosas, o auto-tune, deixam-nos de pé atrás. Mas depois é difícil não resistir ao charme e às palavras.

A partir daqui o disco alterna temas menos conseguidos (Topo do mundo, apesar do belo truque da pandeireta fazer o beat, Blá, blá, blá, Nuvens) com outros que estão lá (o mel de Não esperes por mim, o balanço de Comité central), em particular as duas faixas finais, o electro despudorado de Nós e o hip-hop acetinado de Outro (um minuto), que fecha o disco com umas teclas, um beat e um flow admiráveis.

Era tarde, Carlão estava com sono e no dia-seguinte, a passada segunda, tinha de se levantar cedo. Ele diz: “Não posso fazer um disco de hip-hop puro e duro porque não sou essa pessoa”. Está a ser plenamente honesto: nele convive o pai babado, o admirador de mulheres, o romântico, o boémio, o tipo frágil que se pode perder e sabe que, como uma vez escreveu David Berman, “there is a place past the blues I never wanna see again”. A última coisa que se ouve no disco é: “O pior ficou para trás”. É uma luta e luta-se trabalhando e sendo um exemplo para os filhos. Ainda não é o grande disco que Carlão tem dentro de si, mas o pior ficou para trás e agora é sempre a subir.

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