"Adeus, tudo tem que morrer" (?)

A comoção da despedida da Cornucópia foi única, mas não deve turvar a noção clara de que se tratou de um esplendoroso espectáculo.

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NUNO FERREIRA SANTOS

Bem sabemos que o teatro é a mais efémera de todas as artes, e por isso tanto mais se impõe deixar dele registo testemunhal. O que sucedeu no sábado na Cornucópia foi um momento de intensa emoção e, embora triste, esplendorosa beleza, feita de muita inteligência, trabalho e saber.

Para o anunciado “fim” da companhia eram centenas as pessoas na fila de espera, demonstrando como a Cornucópia criou e fidelizou a cumplicidade de tantos e tantos espectadores. Porque era esse anunciado “fim”, a emoção do momento era da ordem do irrepetível.

Mas até ao “fim” a Cornucópia tinha de nos surpreender. Seria um recital com poemas de Guillaume Apollinaire (1880-1918), tinham dito; não foi – se esse era o pretexto e a introdução, aquilo a que assistimos foi mesmo a um espectáculo, por certo longamente pensado (desde logo no imenso trabalho de tradução tão difícil e no encadeamento dos textos), mesmo que concretizado em curto espaço de tempo e escassos ensaios.

Foi não só a reafirmação concreta do esplendor da língua no autor de Caligramas, como uma reflexão meta-teatral (da arte dos actores banidos desde logo na primeira das distopias totalitárias da nossa cultura, A República de Platão, como era relembrado), tendo como antecedente directo no historial da companhia Ilusão, de 2014, com base em textos de Lorca, trabalhado com muitos não-profissionais.

Ao princípio estavam na cena Luis Miguel Cintra e um actor recorrente, Diogo Dória, depois surgiam também, de fraque vestidos, os dois outros do núcleo da trupe, Luís Lima Barreto e José Manuel Mendes, mais um cúmplice de eleição, o maestro e pianista João Paulo Santos. E iam entrando mais: recorrentes, como Duarte Guimarães ou Luísa Cruz, alguns que há anos não víamos naquela cena, como Rita Loureiro, e tantos vindos de Ilusão.

E houve a presença de actrizes do historial da companhia, como Rita Blanco, ou Márcia Breia que tantos anos ali esteve e há tantos estava ausente – a salva de palmas com que foi acolhida, coisa hoje “anacrónica” no teatro, assinalou que o público sentiu como “um regresso a casa” de Breia.

E a pontuar havia a música, com João Paulo Santos a tocar peças de Satie e sobretudo Poulenc, este justificando-se pelo seu frequente trabalho com textos de Apollinaire (como o ciclo Le Bestiaire, impecavelmente cantado pelo barítono Luís Rodrigues), mas também remetendo para a mais recente memória marcante da ópera Diálogo das Carmelitas, que maestro e encenador fizeram em São Carlos no princípio do ano.

E, imperceptivelmente, no delirante imaginário de Apollinaire – mas também expondo as feridas nesse dos desastres da guerra de 1914-1918 –, já seguíamos as peripécias de um senhor Cronomental (sic) ou assistíamos a uma peça, La Couleur du temps!

Até que Cintra clamava e repetia “adeus, tudo tem que morrer”. Morrer mesmo? Não tanto, que a concluir a soprano Ana Ester Neves cantava mais uma melodia de Apollinaire/Poulenc, Bleuet – designação dado aos soldados, pelo seu uniforme azul, bleu, mas também a uma flor (centáuria em português).

“Morreu” mesmo a Cornucópia? A comoção do momento foi única, mas também não nos turva a noção clara de um esplendoroso espectáculo, afinal concluindo-se com uma hipótese de florir ainda. 

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