O que é que tem de verdadeiro O Lobo de Wall Street?

O filme de Scorsese sobre um vigarista financeiro chega esta quinta-feira a Portugal, já depois de ter gerado polémica por glorificar uma vida de fraude, sexo e drogas. O que é real e o que é ficção? Este texto contém spoilers (revelações sobre o argumento).

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Para O Lobo de Wall Street, a sua mais recente colaboração com Leonardo DiCaprio, Martin Scorsese renunciou à sua tradicional voz off em favor do discurso directo: ao longo do filme, DiCaprio, que interpreta o matreiro vigarista financeiro Jordan Belfort, olha para a câmara e fala directamente com o público. Terence Winter, que escreveu o guião, explica assim o uso desta técnica: “Jordan Belfort está a vender-vos a história de Jordan Belfort, e ele é um narrador muito pouco fidedigno”.

É importante ter isso presente se decidirmos esmiuçar os factos e a ficção do filme. O Lobo de Wall Street é bastante fiel ao livro escrito por Belfort no qual se baseia (editado em Portugal pela Presença), embora haja algumas diferenças. Mas quão fiel à realidade é o livro? Pode ser difícil chegar a conclusões definitivas, especialmente porque algumas das suas histórias mais bizarras, afinal, são mesmo verdadeiras. Ainda assim, fica a tentativa de verificar o que no filme é como na vida real e o que é apenas como na mente de Belfort.

Os contornos gerais da história de Belfort são transmitidos de forma fiel pelo filme: um vendedor de Long Island, talentoso mas em dificuldades, arranja um emprego numa reputada casa de investimentos, a L.F. Rothschild, mas é despedido depois da Segunda-Feira Negra – no dia 19 de Outubro de 1987, várias bolsas pelo mundo sofreram um crash. Depois, foi trabalhar para a Investors Center, uma empresa de acções de baixo valor, e um ano mais tarde abriu “um franchise da Straton Securities, uma pequena corretora” num “stand de automóveis de um amigo em Queens”. Ele e o sócio ganharam dinheiro suficiente para comprar a Stratton e criar a Stratton Oakmont, que transformou numa das maiores corretoras do mercado bolsista secundário dos Estados Unidos. (Tal como no filme, ele contratou alguns amigos de longa data). Consumiu uma quantidade enorme de drogas – incluindo Lemmon 714s, ou Quaaludes, um medicamento sedativo e hipnótico –, requisitou os serviços de inúmeras prostitutas e eventualmente foi preso pelos esquemas de manipulação de mercados que o enriqueceram.

Muito dos diálogos de DiCaprio vêm directamente do livro de Belfort, bem como quase todas as suas aventuras praticamente inacreditáveis: aterrar o helicóptero no seu relvado enquanto estava drogado, despistar-se com o carro quando estava sob o efeito de Quaaludes ou insistir que o capitão do seu gigantesco iate navegasse por um mar tão picado que o barco acabou por se virar, obrigando a um salvamento pela Marinha italiana. Algumas dessas histórias são difíceis de confirmar, mas o agente do FBI que investigou Belfort disse ao diário norte-americano The New York Times: “Eu andei atrás deste tipo durante dez anos e tudo o que ele escreveu é verdade.” (Mesmo a história do iate). Quanto ao já muito discutido lançamento de anões que o filme mostra no seu início, o braço direito de Belfort diz que “nunca abusámos de [ou atirámos] os anões no escritório; éramos simpáticos com eles”. A mesma fonte, um antigo executivo da empresa, diz que nunca houve animais no escritório, muito menos um chimpanzé, e que ninguém chamava “Lobo” a Belfort. Sabemos, pelo menos, que a alcunha não partiu de um jornalista da revista Forbes, como indica o filme. Mas, em geral, é a palavra deste executivo contra a de Belfort.

Outra pequena diferença entre filme e realidade: Belfort, ao contrário de DiCaprio, é um homem baixo, e muitos dos seus conhecidos sugeriram que o seu desejo por dinheiro, poder e atenção são provas de sofrer do complexo de Napoleão. De resto, quanto à fidelidade na forma como DiCaprio retrata Belfort, há muitos vídeos do financeiro que se podem ver online, incluindo um ou dois de festas de empresa da Stratton Oakmont.

O caso de Donnie Azoff, interpretado por Jonah Hill, é mais complicado. Para começar, Azoff é um nome ficcional e a personagem é por vezes descrita como uma composição. A sua história é muito semelhante à de Danny Porush – mas o próprio Porush contestou alguns detalhes. Aqui estão os factos-base: Porush vivia no prédio de Belfort e começou a trabalhar como seu estagiário antes da Stratton Oakmont. Como nota o site History vs. Hollywood, não conheceu Belfort num restaurante – foram apresentados pela mulher de Porush (que, sim, era sua prima, tal como se lê no livro de Belfort; hoje em dia, estão divorciados). Já admitiu que comeu um peixinho de aquário vivo que pertencia a um empregado da Stratton, como é descrito no filme e nas memórias de Belfort, mas nega ter participado num ménage à trois com o empresário e uma funcionária adolescente.

Porush é amigo de infância de Steve Madden, o fundador da empresa homónima de calçado, e a oferta pública pela mesma foi de facto o maior negócio alguma vez feito pela Stratton Oakmont. Madden, como Porush e Belfort, cumpriram penas de prisão por participar no esquema da Stratton.

Os nomes das mulheres de Belfort também foram alterados para o filme. Divorciou-se de Denise Lombardo, que no filme se chama Teresa, depois de conhecer Nadine Caridi numa festa da Stratton Oakmont. Caridi – Naomi no filme e interpretada por Margot Robbie – era modelo de anúncios de cerveja. No livro, Belfort chama-lhe a “rapariga da Miller Lite” [uma conhecida marca de cerveja norte-americana]. Tanto no livro como no filme, Belfort chama-lhe também Duquesa de Bay Ridge (ou só Duquesa) porque ela nasceu em Inglaterra mas cresceu em Bay Ridge, Brooklyn. Tinha de facto uma tia inglesa (chamada Patricia, não Emma como no filme) que contrabandeou dinheiro para a Suíça a pedido de Belfort e que morreu quando o dinheiro dele estava ainda em vários bancos naquele país. (Belfort também tinha um amigo traficante de droga com sogros suíços que fez a maior parte do contrabando de dinheiro – e esse amigo foi mais tarde preso, depois de uma entrega falhada com Porush, tal como se mostra no filme.)

A cena em que Naomi abre as pernas e diz a Jordan que ele não irá ter sexo nos próximos tempos, descobrindo depois que está frente a uma câmara de segurança, é retirada directamente do livro – tal como a discussão na qual atira repetidamente água ao marido. No livro, Belfort reconhece ter batido na mulher, dizendo que a atirou aos pontapés pela escada abaixo. Também ameaçou retirar-lhe a filha, levando-a consigo para o carro e depois batendo com ele contra um poste, na propriedade da família. Estava drogado.  

O corretor da L.F. Rothschild que leva Jordan a almoçar e lhe diz que a cocaína e a masturbação são as chaves para o sucesso de um corretor baseia-se numa pessoa real cujo nome não é alterado nem no filme, nem no livro. Esse homem, Mark Hanna, conta a sua versão da história no YouTube e não parece contestar o espírito do relato de Belfort. Hanna foi mais tarde condenado por fraude bolsista. Não bateu no peito nem cantarolou de forma ritmada, como faz memoravelmente a sua personagem, interpretada por Matthew McConaughey – esse floreado baseia-se num exercício de actor que McConaughey gosta de fazer e foi, segundo as notas de produção do filme, incorporado depois de DiCaprio e Scorsese terem visto o actor fazê-lo no set.

Patrick Denham é outro nome inventado, mas realmente houve um agente do FBI que seguiu Belfort de perto durante anos: Gregory Coleman. Em 2007, ele disse ao canal de televisão CNBC que tinha ficado impressionado pelo carácter “flagrante” dos crimes financeiros de Belfort. Pelo que se pode apurar, não se encontraram a bordo do iate do financeiro como sugere o filme; no livro, Belfort conhece Coleman quando o FBI chega para o prender em sua casa. (A detenção não ocorreu enquanto Belfort filmava um anúncio – é uma liberdade poética de Scorsese.)

O rescaldo

Depois da sua detenção e acusação, Belfort cooperou com o FBI. No filme, Jordan, usando um microfone escondido, passa um bilhete a Donnie avisando-o para não se incriminar. Belfort não passou tal bilhete a Porush, mas, no seu segundo livro, Catching the Wolf of Wall Street, alega ter feito isto pelo seu amigo Dave Beall.

Jordan Belfort acabou por cumprir uma pena de 22 meses na prisão e foi condenado a pagar mais de cem milhões de dólares de indemnização às suas vítimas (o que, aparentemente, ainda não fez). Tal como o filme retrata, depois de sair da prisão tornou-se um orador profissional, falando sobre motivação. No seminário que o filme mostra, DiCaprio encarnando Jordan é apresentado pelo verdadeiro Jordan Belfort (e, na vida real, o actor filmou um testemunho para Belfort).

Belfort não é o único participante da história verídica a aparecer no filme. Um detective privado que ele contratou, Richard “Bo” Dietl, também aparece fazendo de si mesmo.

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post
 

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