Acções fotográficas

Realismo e existencialismo nos dípticos de John Divola

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O estranho cruzamento entre as disciplinas da escultura e da fotografia permite a Divola agir no espaço das suas imagens

John Divola (Los Angeles, 1949) tem uma longa carreira que se tem desenvolvido entre a prática artística e o ensino. Pelo menos desde os anos 1970 tem explorado coisas tão diferenciadas como questões espaciais, cromáticas e técnicas, não permitindo qualquer tipo de reificação ou de fixação de estilo. Por isso as suas imagens têm vários formatos e cores e exploram técnicas muito diversas; nenhum dos seus trabalhos se destina a explorar os limites do dispositivo, da linguagem e da técnica fotográfica, antes funcionando como campos sucessivos de intensa experimentação. Ainda que pouco conhecido, Divola é um nome fundamental da cena artística de Los Angeles, e as suas obras são um contributo decisivo para a problematização do fazer e do pensar a fotografia.

Pode dizer-se que os seus trabalhos são caracterizados por três interesses complementares: a arte conceptual, a performance e o existencialismo francês, nomeadamente de Jean-Paul Sartre. Isso não torna as suas obras plásticas um enunciado teórico; aquelas influências são antes uma consequência da sua prática criativa e da sua pesquisa pictórica. Na arte conceptual e na performance interessam-lhe as ideias de destruição do virtuosismo artístico e de artesania, bem como a tese avançada pelos conceptuais da obra de arte como acção no mundo; em Sartre importa-lhe o modo como a subjectividade e a existência são inseparáveis da relação com os objectos do mundo. O postulado, muito antecipador das actuais discussões sobre o novo realismo especulativo, é que existem objectos reais independentes da imaginação e do pensamento do sujeito, e que é a partir dessa relação com o exterior material e objectivo que se pode perceber/definir a existência subjectiva.

As questões da relação entre o sujeito e o mundo material alimentam as atmosferas visuais dos dípticos que Divola apresenta agora em Lisboa. Coisas e pessoas surgem lado a lado, envolvidos por uma aura que lhes confere singularidade; são como imagens associativas roubadas a um sonho ou vindas de uma trip muito eléctrica. Importa aqui realçar não só a continuidade, a comunidade e o prolongamento entre todas as coisas, mas também a importância que os objectos têm nestas imagens. E a sua importância é não só conceptual mas também escultórica.

Muitos destes objectos são esculturas feitas pelo próprio artista. A sua presença serve a Divola como modo de contestar a pura virtualidade do espaço fotográfico e de afirmá-lo como real, concreto, material, tangível e, claro, experienciável. Para transformar estas obras não em documentos, mas em demonstrações do carácter equívoco e problemático do conceito de objectividade. Interessa contrapor a prática de Divola às ideias alemãs de objectividade: utilização abundante, quase exclusiva, de preto-e-branco, ausência de pessoas, longas exposições, etc. Um contraste que serve um debate fundamental da arte dos nossos tempos.

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O estranho cruzamento entre as disciplinas da escultura e da fotografia — que remonta à origem da fotografia: recorde-se como os fotógrafos construíam cenários exóticos e fantásticos nas suas “lojas” e como as poses eram encenadas — é o que permite a Divola agir no espaço das suas imagens libertando a fotografia, e o fotógrafo, do papel de mediação neutra e de registo passivo do mundo. Divola faz e coloca esculturas nas suas imagens como forma de marcar e de agir no espaço das mesmas. Portanto não estamos no acaso do encontro, mas numa causalidade provocada pelo fotógrafo que induz alterações ao espaço e ao mundo — alterações estas que não surgem como forma de comunicar ideias artísticas e de afirmar uma prática impressionista, mas de mostrar as diferentes modalidades do acesso ao real.

Haveria ainda muito a dizer sobre a proximidade dos dípticos agora expostos em Lisboa com as foto-performances que realizou, como extensão desta vontade de agir física e materialmente no espaço da construção pictórica. Mas importa sublinhar estarmos diante de obras de uma rara complexidade plástica e conceptual que inquieta as nossas ideias sobre os universos e as práticas da fotografia.

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