Acabar o Palácio da Ajuda e fazer dele uma caixa de jóias

Passados mais de 200 anos, será que é desta que o Palácio da Ajuda vai ser concluído? O Governo e a autarquia garantem que sim. Até ao fim de 2018. A obra deverá custar 15 milhões de euros e prevê duas caixas-fortes para expor a colecção de ourivesaria da casa real portuguesa.

A fachada poente do palácio da Ajuda vai ser finalmente terminada e terá uma nova ala onde serão expostas as jóias da coroa portuguesa
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A fachada poente do palácio da Ajuda vai ser finalmente terminada e terá uma nova ala onde serão expostas as jóias da coroa portuguesa Enric Vives-Rubio
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O remate da ala poente segundo o projecto de João Carlos Santos Cortesia: Direcção-Geral do Património Cultural
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António Costa durante o discurso de encerramento da sessão Enric Vives-Rubio
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A caixa de tabaco de D. José I Cortesia: Direcção-Geral do Património Cultural
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A futura sala de exposição das jóias da coroa tal como a deveremos ver em 2018 Cortesia: Direcção-Geral do Património Cultural
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A cafeteria Cortesia: Direcção-Geral do Património Cultural

O momento é histórico e o palácio real, com a sua colecção de jóias da coroa, verdadeiro livro da História de Portugal, merece o aparato de uma assinatura de protocolo a que assistiram largas dezenas de pessoas, entre elas antigos e actuais responsáveis pela pasta da Cultura, o presidente da câmara de Lisboa, representantes das organizações do turismo ligadas à cidade e muitos funcionários do património e dos museus. Nem o primeiro-ministro faltou ao encontro em que se apresentou publicamente o projecto de conclusão do Palácio Nacional da Ajuda, que vai acrescentar toda uma nova ala ao actual edifício e criar espaços expositivos onde serão mostradas cerca de duas mil peças da colecção de ourivesaria da casa real portuguesa, dando o devido destaque às jóias da coroa.

É que, lembraram António Costa e o presidente da autarquia, Fernando Medina, não é todos os dias que se tem oportunidade de concluir uma obra que está adiada há mais de 200 anos e cujo projecto, divulgado esta segunda-feira ao início da tarde, tem o mérito de “fazer algo exemplar”, nas palavras do chefe de Governo – garantir um “trabalho de parceria” entre a Administração Central, o Turismo e o município.

A obra e a exposição a ela associada vão contribuir para que Lisboa tenha uma oferta turística de qualidade, que depende em boa medida, frisou o primeiro-ministro no breve discurso com que fechou esta sessão pública, de uma “capacidade de renovação” para continuar a fortalecer-se. O sector do turismo, que segundo António Costa vale hoje 15% das exportações nacionais, registou este ano um crescimento de 16%. “Na Ajuda teremos um novo pólo de atractividade”, disse Costa, um novo pólo que só é possível graças ao “mecanismo da taxa turística que permite devolver ao sector cultural verbas que serão investidas na valorização do património”.

O remate do palácio da Ajuda, que nos últimos dois séculos já conheceu tantos projectos que ninguém parece saber quantos foram ao certo, está agora orçado em 15 milhões de euros. Os custos do projecto entregue ao arquitecto e subdirector-geral do Património João Carlos Santos prevê a conclusão da fachada poente do edifício (a que dá para a Calçada da Ajuda, que continuará a ter carros e eléctricos), a construção de duas caixas-fortes onde será instalada a colecção de jóias, dividida em dois núcleos distintos, e a beneficiação na Calçada entre a Alameda dos Pinheiros e a Rua das Açucenas.

Do montante global da obra, que deverá estar adjudicada em Julho de 2017 e concluída em Dezembro de 2018, quatro milhões são assegurados pelo Ministério da Cultura, através da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), e os restantes pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) e pela Associação de Turismo de Lisboa (ATL), a entidade que gere a taxa turística da autarquia, que assegura seis dos 11 milhões de euros remanescentes (dos outros cinco milhões, dois saem de capitais próprios e três de um empréstimo bancário).

A taxa turística de Lisboa, fez questão de sublinhar Medina, fará no palácio a sua primeira aplicação de verbas. O socialista que substituiu Costa na chefia da câmara e que se prepara para concorrer pela primeira vez à presidência da autarquia no Outono de 2017 aproveitou a ocasião para interpelar todos os que, há pouco mais de um ano, a contestaram: “A verdade é que taxas e taxinhas vieram, e foram elas que [agora] garantiram a obrazinha.”

Referindo-se ao palácio da Ajuda como um “dos mais importantes e emblemáticos equipamentos culturais do país”, Medina frisou ainda que “a valorização do património cultural é um eixo decisivo no desenvolvimento de Lisboa” e que a proposta hoje apresentada vem pôr fim a uma longa linhagem de projectos que ficaram na gaveta, sobretudo por falta de vontade política.

História trágica

Dessa longa linhagem, que inclui remates com o traço de arquitectos como Raul Lino e Gonçalo Byrne, fazem parte quatro propostas de João Carlos Santos, o arquitecto que agora assina esta quinta versão que, espera, venha a ser a definitiva. Desde 2006 que trabalha na conclusão do palácio, embora só dois dos cinco projectos que para ela fez tenham sido orientados pelo actual programa, intimamente ligado à exposição das jóias da coroa e dos tesouros de ourivesaria da casa real, os dois futuros módulos do museu que nascerá na ala da fachada poente, cada um instalado na sua caixa-forte (por razões de segurança, a exposição das jóias e as dependências reais hoje visitáveis não vão estar ligadas no interior do edifício, embora esteja previsto um bilhete que dê acesso a ambas).

João Carlos Santos começou por um estudo completo da história deste palácio, fazendo pesquisa na Torre do Tombo, nos documentos afectos à extinta Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e noutros arquivos, já que a documentação referente a este imóvel classificado como monumento nacional está dispersa, explicou ao PÚBLICO. “Hoje sinto que há entre mim e este palácio uma relação de grande afectividade, de confiança”, diz o arquitecto responsável pela valorização do Mosteiro de Tibães e da Igreja dos Clérigos, no Porto. “Conheço bem a sua história trágica, que me entusiasmou, e imagino com facilidade D. Luís e D. Maria Pia a criarem os filhos nesta casa, com bailes e banquetes para muitos convidados.”

Construído nos séculos XVIII e XIX, o paço da Ajuda começou por ser em madeira para melhor resistir aos sismos. Esta “real barraca”, assim lhe chamavam, para onde a corte se mudou quando o terramoto de 1755 destruiu o paço da Ribeira acabou por desaparecer num incêndio em 1794, dando depois lugar ao edifício de alvenaria que conheceu vários estilos e arquitectos até chegar ao que hoje temos – um palácio que representa apenas um terço do que estava previsto originalmente (devia incluir uma sé patriarcal e a Academia de Ciências, multiplicando-se por vários pátios) e que é um museu desde 1968, mostrando como vivia uma família real de oitocentos e servindo ao mesmo tempo de palco a jantares e outras cerimónias de Estado.

“A Ajuda andou de tragédia em tragédia – nasceu com o terramoto, foi destruída num incêndio e ficou incompleta por causa das invasões napoleónicas. Pelo meio viveram aqui pessoas, famílias, aqui casaram reis e nasceram príncipes. Poder contribuir para que seja terminada depois de tudo isto é um privilégio”, continua o arquitecto, que tem na ala sul do palácio, onde “se ganha o Tejo numa vista espantosa”, a sua área preferida em todo o monumento.

O projecto

O seu projecto prevê a conclusão da fachada poente com uma nova ala que respeita os limites da massa edificada do actual palácio, na qual se destacam dois corpos laterais mais elevados, com perfil e altura idênticos aos dos torreões Norte e Sul do alçado Este, “funcionando como espelhos”. “A ideia é garantir a unidade de leitura do edifício, garantir o equilíbrio”, diz, explicando que a utilização de “uma estrutura de lâminas de sombreamento vai permitir mostrar que não há qualquer intenção de copiar nada do actual edifício neoclássico”. “Sem mimetismos”, frisa, como mandam as cartas internacionais de restauro e valorização do património. “Quem chegar aqui pela primeira vez não terá dificuldade nenhuma em distinguir o que é contemporâneo do que é dos séculos XVIII e XIX.”

Lá dentro brilharão as jóias que pertenceram à família real portuguesa, peças de aparato e de uso quotidiano. No Piso 3 estarão as directamente ligadas à coroa, na sua esmagadora maioria do século XVIII e reflexo do fácil acesso que Portugal tinha ao ouro e às pedras preciosas do Brasil, assim como aos mais talentosos artífices nacionais e estrangeiros. Nele se poderão ver a coroa usada por D. João VI, espadas, mantos reais e outros trajes de gala, assim como as insígnias honoríficas usadas pelos monarcas. No Piso 4 estará o tesouro de ourivesaria, em que merecem destaque as chamadas pratas da coroa – “o maior conjunto do mundo de prata civil do século XVI”, segundo o director do palácio, José Alberto Ribeiro – e a Baixela Germain, encomendada pelo rei D. José I ao ourives do rei de França.

Ao todos são cerca de 2000 peças distribuídas pelos dois núcleos, menos de um terço do acervo total da Ajuda, que ultrapassa as 6300, precisa o director. Se pedimos a José Alberto Ribeiro que destaque algumas, a resposta é imediata – além da coroa e das pratas, o director chama a atenção para a laça de esmeraldas colombianas que pertenceu a D. Maria Francisca Benedita, para a tiara de estrelas que pertenceu a Maria Pia e depois à sua nora, D. Amélia, rainha que este historiador de arte conhece bem (é autor de uma biografia sobre a mulher do rei D. Carlos), e para a caixa de tabaco que D. José I encomendou ao ourives de Luís XV, Pierre-André Jacqmin. “Diz-se que a amante do rei de Franca, a célebre Pompadour, quis vê-la e que ficou maravilhada. Não queria sequer que viesse para Portugal”, diz o director. “São peças que contam a história de Portugal em períodos conturbados e não só”, diz ao PÚBLICO. “São ainda símbolos nacionais, de soberania, que mostram a corte de aparato, mas também a corte na intimidade.”

Nestes dois pisos, cujo guião está a ser trabalhado pela equipa do palácio e ainda sem projecto expositivo atribuído, não haverá espaço para qualquer réplica das seis peças das colecções reais que foram roubadas do Museu Municipal de Haia, em Dezembro de 2002. Nem sequer a do castão de bengala do rei D. José I em ouro e com 387 brilhantes, talvez a mais espectacular deste pequeno conjunto. “O objectivo é mostrar o que temos hoje, não o que perdemos”, diz o director. “E isto com a magia de ver todos estes tesouros numa caixa-forte.”

Os quatro milhões que a DGPC vai agora investir no projecto de conclusão do palácio e na exposição das jóias vêm precisamente dos seis milhões de euros que o Ministério da Cultura recebeu do seguro das jóias roubadas, depois de as autoridades holandesas darem por concluída a investigação em Dezembro de 2004 sem que nenhuma delas fosse recuperada (desse seis milhões, 1,8 tinham já sido gastos na compra de uma pintura de Giovanni Tiepolo para o Museu Nacional de Arte Antiga).

O preço do bilhete para a exposição das jóias reais ainda não foi definido, mas as contas dos estudos de viabilidade usaram como valor de referência 10 euros por adulto, esclarece o gabinete do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, precisando ainda, em resposta ao PÚBLICO, que a lei orgânica da DGPC permite que uma obra desta natureza e deste valor não seja sujeita a um concurso internacional de arquitectura caso o autor do projecto não seja exterior a este organismo que tutela o património.

Foi precisamente Castro Mendes que, na sua breve intervenção na cerimónia que antecedeu a assinatura do protocolo a 20 anos entre a DGPC, a ATL e a CML, citou um poema de Gonçalo M. Tavares para lembrar que também ali, na Ajuda, “o futuro sai da fenda e da ferida”: “O remate do Palácio Nacional da Ajuda é também o remate do eixo Belém-Ajuda que o Governo quer gerir em conjunto com a autarquia.”

Se a exposição na ala poente vier a ter 200 mil visitantes/ano – “estimativa conservadora”, diz o ministro da Cultura –, o plano de negócio prevê que o retorno do investimento comece 12 anos após a sua abertura. A partir daí a tutela conta com as receitas de bilheteira e do aluguer de espaços (terá uma cafeteria com ampla vista sobre o Tejo e uma sala polivalente com capacidade para 120 pessoas) para garantir a saúde financeira desta grande caixa de jóias. “Agora é mãos à obra”, disse o primeiro-ministro no fim da sessão. “Reunidas as condições financeiras, só falta executar o projecto e começar a vender bilhetes.”

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