A voz manda, o público obedece

Depois de Quiet Volume, com Tim Etchells, Ant Hampton visita-nos com mais um exemplar do seu autoteatro. Em The Extra People, sábado e domingo na Culturgest, o público entra na sala com uma voz de criança a ditar-lhe as acções – como se trabalhasse num armazém.

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É uma estimativa pouco rigorosa, mas Ant Hampton calcula que aproximadamente 90% dos bens que consumimos todos os dias passem por uma fase em que são depositados em armazéns e, mais tarde, recolhidos por funcionários cada vez mais solitários nas suas funções.

Não há muito tempo, diz o criador inglês, este trabalho fazia-se através da leitura de códigos de barras e subsequente empilhamento dos produtos numa palete, rumo à distribuição e à expedição para todo o mundo. Mas cada vez mais, garante, a vida dentro dos armazéns parece-se com um bizarro cenário de uma ficção científica demasiado terrena, em que os trabalhadores obedecem a ordens de uma voz robótica que carregam nos auscultadores, e que lhes guia milimetricamente os passos durante a jornada de trabalho.

Esta prática laboral vai-se tornando vulgar na vida destes milhares de trabalhadores a um tal ponto que Hampton entende deixar de ser entendida como uma imagem de desumanização, mas sim de humanização da relação com as máquinas.

Este é um dos pontos de partida para The Extra People, espectáculo apresentado sábado e domingo na Culturgest, em Lisboa. Dividido em vários grupos de 15 pessoas, que entram para a sala a cada meia hora (entre as 17h30 e as 21h30), coincidindo dois dos grupos distintos no seu interior na hora de duração do espectáculo, o público é chamado ao lugar de protagonista, respondendo às ordens ditadas por uma voz supraconsciente nos auscultadores de cada um.

Ao criador inglês não interessa tanto explorar uma “linha imaginária entre cada um de nós e o sistema”. Não se trata de uma peça que pretenda chafurdar numa relação de conflito entre homem e máquina, na exploração da hostilidade para com a crescente automatização do emprego. “É muito mais misturado do que isso”, diz ao Ípsilon. “A nossa relação com esse sistema está muito misturada, não nos podemos extrair dela com essa facilidade; todos temos muito capitalismo dentro de nós e não é algo fácil de separar. Não quis fazer uma coisa simplista.” Recusando um lado fatalista e desesperançado, Hampton prefere que qualquer vislumbre de resistência possa nascer do simples facto de os participantes serem humanos e, por isso, capazes de demonstrar afecto pelos outros.

A situação em que coloca o público, no entanto, é sempre de absoluta estranheza. Cada grupo de 15 começa por ser sentado na plateia, passando depois para o palco (ao mesmo tempo que um novo grupo na plateia o observa). Ant Hampton recorda-se de uma certa noite, passada num hotel, em que ligou a televisão e assistiu “a um daqueles documentários sensacionalistas do History Channel ou do National Geographic” com imagens do desastre do navio Costa Concordia que, em Janeiro de 2012, naufragou junto à costa da Toscana. O documentário, montado a partir de vídeos captados por telemóveis dos passageiros sobreviventes, continha imagens de algumas pessoas perdidas percorrendo uma pequena localidade italiana, acabando por entrar numa igreja. “Estavam na igreja porque não sabiam para onde ir e ainda estavam todos a usar os coletes cor-de-laranja fluorescentes. Era uma imagem bela, absurda, assustadora, comovente.” Uma imagem cujo lastro desemboca em The Extra People.

A Ant Hampton – que, em 2012, apresentou no Festival Alkantara, em Lisboa, The Quiet Volume, co-criação com Tim Etchells – interessava também, desde o início, o conceito de figurantes (extras, em inglês), no sentido de uma massa anónima que pudesse também gerar “um sentimento de grande mudança de dinâmica de poder”. Os figurantes, “personagens quase anti-teatrais” que fascinam o autor por não lutarem por atenção e estarem nas margens daquilo que se entende como essencial no teatro, não têm direito a usar da palavra, apenas cumprem aquilo que lhes é pedido, sem possibilidade de responder ou contestar. “E por isso parecem falar mais fortemente daquele que é o nosso lugar no teatro enquanto público”, considera. “E aqui é estranho porque, de início, é-se um elemento do público a fingir que é um elemento do público.” Ou seja, sentado na plateia, cada um estará apenas a obedecer às ordens ditadas por uma voz pré-gravada de uma criança a imitar uma máquina, a imitar uma criança.

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A génese do autoteatro

The Extra People inscreve-se num tipo de performance que Ant Hampton desenvolveu a partir de 2007 com Silvia Mercuriali, desde a estreia de Etiquette – peça para duas pessoas no interior de um café, com instruções para aquilo que devem dizer uma à outra –, e que faz do público não apenas o protagonista de cada criação mas também a única testemunha daquilo que acontece.

A primeira semente para aquilo que viria a ser o autoteatro surgiu, no entanto, em 1999, quando Hampton foi convidado a desenvolver uma peça e pensou em puxar para o projecto um amigo que gostaria de ver em cena. “Só que ele era alguém que nunca tinha pisado um palco”, lembra. “Senti-me atraído pela crueza de alguém que não está preparado para sobreviver naquele lugar, mas quis criar um espaço onde isso fosse aceitável. Como soube desde logo que ele não queria aceitar a responsabilidade de aprender texto, foi uma solução prática pô-lo a actuar com instruções que recebia nos auscultadores.” E que recebia em igualdade de circunstâncias: em Bloke o performer descobria as indicações daquilo que deveria fazer ao mesmo tempo que o público que tinha diante de si, igualmente munido de auscultadores.

The Extra People integra-se nesse mesmo princípio de focar as reacções humanas a instruções proferidas por uma voz de autoridade. No caso, uma voz de criança. “A voz que usamos é uma voz de criança de uma das companhias que faz vozes para os sistemas de armazenamento e que se pode comprar e descarregar para o nosso computador”, conta Hampton. “Há uma fusão estranha entre o intensamente corporativo e o sentimento pessoal que se tem necessariamente em relação a uma criança”, reflecte. “Acho que isso dá uma certa qualidade de sonho a tudo quanto se passa.” Apesar desse plano onírico, não custa ver realidades demasiado identificáveis como sugestões da crise dos refugiados – os coletes reflectores e os cobertores apontam nesse sentido – e outras situações extremas num ambiente pós-catástrofe.

Ant Hampton admite que tudo possa ser interpretado como um ensaio sobre a impotência humana. Mas o seu objectivo passa sobretudo por desafiar a noção de colectivo que existe no teatro, do público como um grupo. Se o teatro deve ser um reflexo da sociedade, argumenta, a assistência deve espelhar uma sociedade atomizada. O colectivo será sempre, porventura, uma mera ilusão.

The Extra People from Ant Hampton on Vimeo.

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