A vírgula no sapato

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Cristina Carvalhal e Crista Alfaiate PEDRO FILIPE MARQUES

Este espectáculo é composto por uma sequência de quadros, uns mais sérios, outros mais cómicos, que, juntos, tecem um comentário aos quase cinquenta anos de luta entre utopias que vão do fim da Comuna de Paris, em 1871, ao começo da primeira grande guerra, em 1914.

Um comentário, não — vários. Os quadros são feitos de excertos, fragmentos e citações, apresentados quer pelo jogo dos actores quer pelo aparato de sons e projecções, que compõem uma grande colagem em movimento. A partir da deportação dos communards para a Nova Caledónia, os directores convidam os espectadores a explorar as contradições desses tempos e, obviamente, sim, claro está, dos nossos.

A récita da estreia começou um pouco a medo, com os actores apresentando algo friamente excertos de cartas e discursos dos deportados, que servem para conhecer o que sobrou dos ideais revolucionários e patriotas, bem como a estranheza e exotismo que marcarão a relação dos europeus com o resto mundo por muito bom tempo. À medida que se permitiram brincar com a quantidade enorme de informação que foi levantada mas que, aparentemente, não lhes é familiar, os actores começaram a bater as asas e voar, já que são excelentes intérpretes e criadores teatrais, capazes de arrastar a plateia para as suas fantasias, assim acreditem nelas.

 O espectáculo tem momentos altos, quer visualmente quer de interpretação, e a encenação da fumarada das trincheiras da primeira guerra, por exemplo, é excelente. Porém, são visíveis, a olho nu, a incredulidade perante aqueles projectos utópicos, revolucionários, de cidadania, que fizeram boa parte dos últimos duzentos anos e o cepticismo em relação aos motivos que levam pessoas a dar o peito às balas, em vários pontos do mundo, enquanto se faz teatro. Essa desconfiança prejudica o vigor e nitidez das actuações, independentemente do tema.

 Quando o elenco pega com maior convicção no texto, e se entrevêem, aqui e ali, razões pessoais para fazer um espectáculo como este, a cena levanta voo; mesmo se, ou talvez por isso, o ponto de vista pareça oposto ao das figuras invocadas. Nesses momentos, estes actores são como autênticos anjos da história, voando no hiper-espaço. Sem pontos de vista definidos, porém, o absurdo e paradoxal não passa de non-sense. A féerie de citações é libertadora, o que talvez faça jus às aspirações dos revolucionários, ou pelo menos de elogio fúnebre, e foge de qualquer tentação autoritária, denunciando as máscaras do poder. Desconstrói-se à esquerda, à direita e ao centro, em favor do teatro. Não sabemos o que ficará depois — mas esse é o trabalho dos espectadores, não dos artistas.

Nova, Caledónia, a parceria de Miguel Loureiro e André Guedes, com a participação de Cristina Carvalhal, Crista Alfaiate e João de Brito, entre outros colaboradores, é um bom espectáculo, que ficará ainda melhor quando assentar ideais.

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