A vingança de Lassie

O húngaro Kornél Mundruczó propõe um melodrama virtuoso e excessivo, que não dá tréguas ao espectador.

Foto

Não fosse Béla Tarr e praticamente não teríamos notícias do cinema que se faz pela Hungria — Tarr, aliás, produziu um dos filmes anteriores de Kornél Mundruczó, actor, encenador e realizador com um pé no cinema e outro no teatro.

Mundruczó já esteve em Portugal com as suas produções teatrais — como a sua adaptação do romance dos irmãos Strugatsky É Difícil Ser um Deus, mostrada no Alkantara Festival em 2010 —, mas este é o primeiro dos seus cinco filmes a chegar ao circuito comercial português. Deus Branco, premiado na secção Un Certain Regard de Cannes em 2014 (e dedicado a um dos mestres do cinema húngaro, Miklós Jancsó), marcou também o seu “bilhete de saída” do tradicional circuito dos festivais. É um filme que busca engajar o grande público, trabalhando dentro de uma lógica de género — o melodrama familiar com animais (pense-se a cadela Lassie, o golfinho Flipper, a orca Willy e afins), mas também o filme de terror sobre a revolta da natureza (Os Pássaros, de Hitchcock, pode ser a referência).

Deus Branco

é, ao mesmo tempo, a história de uma adolescente forçada a crescer depressa, a crítica de uma sociedade que não sabe como tratar os animais, e a sátira de uma paisagem política (húngara mas, mais latamente, europeia) arreigada a um nacionalismo equívoco. Deixada com o pai enquanto a mãe vai “em viagem de negócios”, Lili (Zsófia Psotta) é apanhada no meio de uma guerra surda entre os pais divorciados, que acaba por se repercutir no seu cão e no seu próprio comportamento de rebelião contra os adultos. Hagen, “rafeiro” numa Hungria onde os cães que não são “de raça pura” são multados ou abatidos, é separado da dona, tornando-se numa espécie de “pária” que vai acabar por se tornar num inesperado líder revolucionário quando os “rafeiros” se levantam contra as “autoridades”.

Não há nada de subtil ou de discreto em Deus Branco, que parece calculado ao milímetro, que procura sublinhar tudo com grandes pontos de exclamação, correndo o risco da indigestão. Mas é difícil não admirar a convicção com que Mundruczó se entrega ao melodrama exacerbado, ou a energia desesperada com que encena a sua história: é um filme em constante movimento, seguindo ora Lili que pedala por Budapeste em busca de Hagen, ora Hagen procurando sobreviver, ambos em busca de âncoras numa sociedade “sem coração” que não é capaz de retribuir o seu amor. Deus Branco impõe-se, força-se, não dá ao espectador tréguas nem pausas. É um filme que se admira pela total ausência de cedências ou compromissos (e nisso, há que dizê-lo, é digno herdeiro do que conhecemos do cinema húngaro), mas cujo virtuosismo mal disfarçado, cuja abordagem funcional ao género, paredes-meias com a manipulação, impede a completa adesão. Quem o vê, no entanto, não se esquece dele tão cedo — e isso é qualquer coisa.

 

Sugerir correcção
Comentar