A vida toda de Kayhan Kalhor em cada nota que lhe ouvimos em Porto Covo

Como era esperado, os dois primeiros dias de Festival Músicas do Mundo, em Porto Covo, ficarão na memória pela magnífica sessão de encontro entre a cultura persa e a anatoliana, vinda de Kayhan Kalhor e Erdal Erzincan. Dois instrumentos de cordas em diálogo, capazes de calar uma larga parte do largo principal.

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Há toda uma vida dentro do kamancheh de cada vez que Kayhan Kalhor o toca. Inscrito numa milenar tradição da cultura persa, Kalhor pertence a uma linhagem de músicos para quem a execução do instrumento demora toda uma vida a aprimorar e cujo processo de aprendizagem nunca se esgota, preferencialmente através de um contacto diário com o seu mestre. Por isso, quando ouvimos este aparentado do violino, de aparência frágil e apoiado no chão, na vertical, com o músico ajoelhado como que humildemente prostrado perante a sua grandeza, há toda uma vida a soltar-se das suas cordas, num emaranhado de notas que mesmo no lotado Largo Marquês de Pombal (Porto Covo), em fim-de-semana de arranque do FMM Sines com concertos gratuitos (rodeados de restaurantes, geladarias e roulottes de farturas e cerveja), há largas centenas de pessoas num respeitoso e profundo silêncio que é, antes de mais, um respeito por si mesmas: ouvir a música entretecida por Kalhor em duo com o músico anatoliano Erdal Erzincan exige criar espaço para

Erzincan não é mera figura decorativa, note-se. É ele que no baglama (parente do alaúde) vai servindo de contraponto e disputando num equilíbrio sublime o primado melódico a cada momento, numa virtuosa troca de melodias em que, às tantas, é quase impossível separar os dois instrumentos, como se bailassem fundidos um no outro. Tudo isto resulta, seguindo a mesma lógica da vida inteira dedicada ao kamancheh, numa busca de beleza que leva todo o concerto a desenvolver. Do início contemplativo em que Kalhor e Erzincan parecem acabados de ser apresentados, abordando a música com alguma cerimónia, os dois passam progressivamente para uma contagiante sucessão de melodias entrelaçadas a partir de uma execução técnica soberba, como que puxando o público cada vez mais para o centro gravitacional da sua sedução musical. E a prova de que uma música exigente, num contexto de concerto gratuito ao ar livre, pode ser arriscada mas também capaz de se impor, é a tremenda ovação em pé, com o público a manifestar-se ruidosamente e a saltar das cadeiras (quem as conseguiu) como que impelido por molas após 70 minutos de música ininterrupta. Foi como se costuma dizer dos segundos prévios a experiências próximas da morte – viu-se a vida toda a desfilar diante dos nossos olhos. Simplesmente, talvez tenha sido a vida de Kalhor e de Erzincan, exibida de forma hipnotizante.

Blues do Bósforo e transe indiano
Foi o ponto alto que se esperava na abertura do FMM, ainda em Porto Covo por mais um dia, antes de voltar ao seu cenário habitual – o Castelo de Sines e a Avenida da Praia. Mas os motivos de entusiasmo não se esgotaram aí. A seguir à dupla iraniana/anatoliana, a noite de sábado foi ainda palco da actuação de Teta, exímio guitarrista de Madagáscar, acompanhado por Kira, cujo tsapiky soa a blues africanos a transbordar de alegria e de uma vivacidade pouco descoberta nas peneiras do rio Mississípi. O povo rapidamente se pôs a dançar, provando a espantosa facilidade com que duas vozes, acompanhadas de guitarra e percussão, são rastilho suficiente nesta sua abordagem extremamente rítmica e repetitiva (no sentido de funcionar por pequenos ciclos e não por implicar saturação) para montar uma celebração descomplicada, em que o abandono físico parece a única resposta possível.

Terá sido a actuação a produzir as reacções mais enérgicas dos primeiros dois dias de FMM. Ao fim da tarde de sábado, o Largo Marquês de Pombal assistira ao israelita Istiklal Trio, formação de qanun, oud e percussões, cuja sonoridade aparece transcrita na perfeição no título de um dos seus temas: “Bluesphorus”. O estreito de Bósforo enquanto símbolo da transição entre Europa e Ásia e a vizinhança de Istambul, estando a música do trio repleta de referências à música clássica turca; os blues como chave para a proposta de modernização que chega sobretudo por via de Yaniv Taichman, que ataca frequentemente o instrumento como se tivessem acabado de lhe tirar das mãos a guitarra eléctrica onde tocava Led Zeppelin e Metallica e substituído por um oud abordado com essas referências de hard rock evoluídas a partir de matrizes blues. Num concerto que vinga, antes de mais, pelos recursos técnicos de Ariel Qassis no qanun, ficaria patente também o facto de a música nunca ser apenas a música num festival como o FMM, representando povos e culturas. “Shalom Palestina!”, gritaram-lhes. E eles, de cima do palco, com visível desconforto, fizeram um aceno de concórdia.

Pelas ruas de Porto Covo tinha já circulado a Jaipur Maharaja Brass Band, típica fanfarra do Rajastão, vinda de Jaipur, capital do estado e com uma taxa de crescimento demográfico acima dos 25% nos últimos dois censos (2001 e 2011). Tal como o seu líder não se cansa de repetir, a banda pretender levar cor e amor para os sítios por onde passa, lembrando ainda que na Índia não pode haver casamento sem uma fanfarra destas a providenciar a festa. E é isso que acontece na transformada pacatez de Porto Covo, com tocadores de sopros e percussão, duas bailarinas e um homem que tanto equilibra um cântaro sobre copos de galão que coloca em cima da cabeça quanto, em seguida, passa fogo pelo corpo e o apaga engolindo-o. Um festim para os sentidos, portanto.

A brass band tinha já actuado no dia inaugural do FMM, que recebeu ainda a guitarra portuguesa de Custódio Castelo ao lado da fadista luso-francesa Shina e a muito curiosa fusão de música bretã com hip-hop assinada pelo duo Krismenn / AleM. Mas nessa jornada, foi sobretudo a trupe comandada pela voz de Bachu Khan a criar motivos de interesse. Sentados no palco, os músicos entregam-se a uma febril celebração musical, num canto cheio de vozes de resposta e uma percussão em que os khartal (espécie de castanholas indianas) ajudam aos momentos de êxtase. É, em todo o momento, um concerto de transcendência feliz, a que é quase impossível não aderir sem reservas, enquanto se assiste com delícia a Bachu Khan, nas suas escaladas de transe, esticando o corpo, os braços, as mãos trepando degraus imaginários com os khartal e a voz estendida em picos agudos, a tentar tocar o céu sem deixar que os joelhos descolem do chão.

 

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