A vida toda de Buddy Guy ouve-se nas cordas de uma guitarra

Aos 79 anos, Buddy Guy é talvez o último de uma geração de lendas dos blues. Apadrinhado por Muddy Waters, é um dos maiores no som eléctrico de Chicago e acaba de lançar Born to Play Guitar.

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Buddy Guy
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Gary Clark (à esq), B.B. King, Buddy Guy e Warrne Haynes a tocarem juntos em Fevereiro de 2012. AFP PHOTO/Jim WATSON

25 de Setembro de 1957. O dia em que Buddy Guy desceu do comboio que o levou até Chicago pela primeira vez continua gravado na memória como possivelmente o mais importante da sua vida. Tanto assim que, além de guardar a data na ponta da língua, e de descrever ao PÚBLICO o momento em que saltou da carruagem, olhou para o céu e decidiu o caminho a tomar através da cantilena infantil “eenie, meenie miney mo, which way should I go?”, mandou gravá-la em todas as suas guitarras.

A história de Buddy Guy, uma das figuras cimeiras da electrificação dos blues, é tão improvável que concorre facilmente para qualquer compêndio de lendas na História da Música.

Quando deixou o seu trabalho de segurança na Louisiana State University, em Baton Rouge, região onde tinha começado a arriscar as suas primeiras subidas a palco, depois de finalmente conseguir comprar uma guitarra a sério, Buddy Guy fê-lo por sugestão de um amigo que o incentivou a arriscar mudar-se para Chicago, a fim de poder ver e ouvir ao vivo os seus heróis – Muddy Waters, Howlin’ Wolf ou Little Walter. “Era esse o meu objectivo”, confessa Buddy ao PÚBLICO. “Nunca pensei que era bom o suficiente para poder gravar os meus próprios álbuns. Nem sequer me passava pela cabeça tentar competir com eles. Eram músicos extraordinários e até a falar parecia que cantavam – se estivesse a conversar com um deles agora já estava a bater o pé ao som do que eles diziam. Não acho que eu seja assim tão bom.”

Só que a qualidade de Buddy Guy, aos 21 anos, quando chegou a Chicago, era já por demais evidente. Ele que crescera numa quinta do Louisiana, no seio de uma família pobre, sem quaisquer condições de lhe poder comprar uma guitarra, cedo começou a fabricar os seus próprios instrumentos, enrolando fios ou arames à volta de pregos que depois esticava e lhe permitiam tocar de forma precária. “Desde que fizesse algum som, eu ficava feliz”, confessa. “Nunca sonhei um dia ganhar a vida decentemente a tocar guitarra. Sempre pensei que a minha subsistência viria de conduzir um camião ou um tractor ou qualquer outra coisa que a minha pouca escolaridade me permitisse.”

Mesmo que a sua vida fosse passada a manobrar um camião ou um tractor, Buddy Guy sabia, no entanto, que o seu chamamento tinha seis cordas e, de preferência, havia de ligar-se à electricidade. É isso que anuncia no título do seu novo álbum, Born to Play Guitar, lançado esta sexta-feira, quando acaba de completar 79 anos. Mas se hoje o seu papel como nome fundamental dos blues é incontestável, tal só é possível porque no momento em que ficou completamente falido em Chicago a sua sorte mudou. “Ao meu terceiro dia sem um tostão para comer”, recorda, “um tipo veio ter comigo enquanto eu estava a pedir uma moeda para telefonar a pedir dinheiro para o meu regresso casa e disse-me ‘Dou-te uma moeda, mas antes podes tocar a tua guitarra?’ Eu toquei e ele levou-me para um clube muito famoso, o 708 Club. Ainda bem que ele não me deu a moeda, porque teria voltado para o Louisiana e feito outra coisa da minha vida.”

A sanduíche de Muddy Waters
Foi logo ali, no 708 Club, que Buddy Guy caiu nas melhores mãos. Ainda ele se estava a queixar de fome – “Estás a mentir, quem toca assim não pode ter fome”, responderam-lhe – quando alguém tirou Muddy Waters da cama, dizendo-lhe que tinha de ir ouvir aquele miúdo. “Nem penses em voltar para casa”, disse-lhe Muddy, entregando-lhe uma sanduíche e, ao mesmo tempo, mudando-lhe a vida a partir desse instante. Se é a Muddy Waters que dirige o seu primeiro profundo agradecimento, pelo seu discurso passa igualmente o reconhecimento constantes “aos ingleses”. Foram músicos como os Rolling Stones ou Eric Clapton e a sua repetida dívida para com os mestres dos blues a conseguir que Muddy Waters, B.B. King, Howlin’ Wolf ou Mississippi Fred McDowell passassem a ganhar o suficiente para conseguir viver da música.

“Hoje sinto-me muito sozinho”, confessa Buddy Guy. “Sinto que fui dormir, acordei e desapareceu toda a gente.” Há três anos, lembrava à Rolling Stone que só B.B. King o acompanhava enquanto resistente dessa geração mítica dos blues. Agora, com a morte de King, treme-lhe a voz ao reconhecer que o mundo mudou e que hoje já dificilmente se pode escutar um disco de blues onde quer que seja. As rádios não tocam blues, os clubes são interditos a menos de 21 anos... “Até os meus filhos, só quando fizeram 21 anos vieram ver-me tocar com a minha banda. E agora dois deles têm uma guitarra e tudo o que querem fazer é tocar como eu. Não percebo como podem pegar num miúdo de 18 anos e mandá-lo para o exército e, ainda assim, não o deixam ir a um clube beber uma cerveja e ouvir boa música.”

Buddy Guy elegou já um miúdo de 16 anos, Quinn Sullivan, como aquele a quem legará a tarefa de manter os blues vivos, mas enquanto lhe couber ainda a ele continuará a buscar inspiração nas conversas que ouve a desconhecidos, “em aeroportos, restaurantes ou bares, que falam dos seus momentos mais felizes ou infelizes, das suas vidas amorosas ou familiares.” Afinal, como é evidente, no seu caso, os blues são a vida. Nunca menos do que isso.



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