A vida nas nuvens – uma enciclopédia

A primeira grande exposição comissariada pelo novo director-adjunto de Serralves, apresenta perto de 100 obras de 50 artistas, muitos dos quais pela primeira vez em Portugal. Com eles, atravessamos o século XX do cogumelo nuclear e mergulhamos no século XXI da nuvem digital

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Num dos corredores de Under the Clouds as imagens históricas de A sociedade do espectáculo (1973), de Guy Debord, encontram-se com as imagens virtuais de My best thing (2011), de Frances Stark FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Estamos à entrada de um corredor semiobscurecido. A alguns passos, num ecrã impecavelmente suspenso junto ao tecto, passam as imagens a preto-e-branco de “A sociedade do espectáculo”, o filme de 1973 que o escritor e cineasta francês Guy Debord realizou, tomando por base o seu livro homónimo publicado seis anos antes – a obra chave da Internacional Situacionista. É em primeiro plano. Por detrás, ao fundo do corredor, brilha o verde fluorescente que serve de cenário às duas personagens de My best thing, a animação de 2011 que Frances Stark apresentou pela primeira vez na Bienal de Veneza desse ano (e que parte das interacções da artista californiana com dois homens italianos com os quais se relaciona em chats anónimos e com os quais tanto tem sexo online quanto discute arte e literatura).

Separadas por quatro décadas, estas duas obras funcionam como prólogo e desenvolvimento do caminho traçado pela sociedade do pós-guerra: por um lado, a crítica a um mundo em que todas as relações sociais se começavam a ver mediadas por imagens e mercantilizadas – o despontar de um capitalismo sistémico e destituído de oposição (o retrato do arranque da Terceira Revolução Industrial); em pano de fundo, surge o mundo do passo seguinte, aquele em que não só tudo o que fazemos e dizemos na arena pública mas também parte significativa do que pensamos e sentimos de forma supostamente privada é absorvido pelo sistema para processamento e venda de volta ao emissor na forma de um conjunto de experiências sensoriais e cognitivas desmaterializadas e flutuantes (o retrato da Nova Era Digital).

“Actualmente vemos, pensamos e sentimos através da nuvem”, diz a dada altura João Ribas na visita para imprensa de “Under the clouds – Da paranóia ao sublime digital”, a sua primeira grande exposição enquanto director-adjunto e curador sénior do Museu de Serralves, no Porto.

No final de Maio, Ribas esteve em Lisboa como orador do ciclo de conferências internacional Crítica e Valor, comissariado por Nuno Crespo para o Instituto de História da Arte da Universidade Nova. Foi a primeira apresentação do pressuposto teórico que construiu como trama para esta mostra – uma narrativa em que os séculos XX e XXI se desenvolvem sob a égide de duas nuvens: o cogumelo da era nuclear e a “cloud” digital – duas entidades em que identifica “uma relação histórica directa”.

“Nos seus efeitos interligados e no mundo económico, cognitivo, afectivo e social que engendraram, as duas nuvens do século XX e XXI têm uma relação histórica directa. As redes de informação e de comunicação que a nuvem digital condensa têm a sua origem nas tecnologias da anterior nuvem das armas nucleares do pós-guerra”, explicou na altura Ribas. Para concluir: “Nestas nuvens inefáveis reside a natureza fantasmagórica do sublime contemporâneo.”

No debate pós-conferência, os fundamentos desse “sublime contemporâneo” foram tema de discussão. Ribas parte de A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful (1757), de Edmund Burke, e da Crítica da Faculdade do Juízo (1792), de Kant. À luz destes autores, para ele, o terror suscitado pelo fantasma maior do holocausto nuclear condensado na forma do cogumelo – “um caule rodado” e “uma coroa de platina incandescente” que “pode cegar uma pessoa com a sua beleza”, como escreveu Don DeLillo – é a entrada do século XX numa lista de exemplos do sublime em que Kant e Burke admitiam já as nuvens. Só não essa nuvem mortal. Percussora desta outra nuvem 2.0 dentro da qual todos vivemos agora e que, à sua maneira, não deixa de suscitar o mesmo terror, ao abraçar invisivelmente o mundo com a sua toxicidade própria.

“O sublime contemporâneo funciona tanto com afecto e cognição como com matéria-prima real, todos ligados nas redes sociais, económicas, emotivas e libidinais que impregnam tanto o espaço físico como o digital”, escreve Ribas no catálogo de Under the Clouds. Prosseguindo: “Os efeitos daí resultantes são muitos: desde corpóreos, cognitivos e afectivos, até materiais, geopolíticos e económicos. São sentidos como ‘crashes’ financeiro, ‘crashes’ informáticos, vírus, mas também como solidão, fadiga cognitiva, perturbações de atenção e síndrome do túnel cárpico. À medida que a circulação e recolha de dados se normaliza e generaliza, a nossa paranóia e melancolia aumentam. […] A nuvem cobre-nos com a sua neblina sensorial – as suas visões, os seus sons e padrões.”

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Em Rigged, de 2014 (em baixo), Kate Cooper evoca as lógicas de manipulação e alteração do corpo feminino por via das novas tecnologias e questiona como essas figuras virtuais se comportariam em cenários reais FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Deus morreu há muito. A cloud é a nova força omnipresente e omnipotente. Em Serralves está, por exemplo, camuflada numa delicada e elegante fotografia de uma vista de mar com três navios em pleno azul: em NSA – Tapped Fiber Optic Cable Landing  Site, Point Arena, California, USA (2014), Trevor Paglen regista um dos vários pontos do globo  em que as linhas de fibra-óptica suboceânicas chegam a terra e a informação que transmitem é captada pela Agência de Segurança Nacional norte-americana. 

A paranóia “quase patológica” da vigilância, a obsessão arquivística, a irreprimível e constante pulsão de produção de nova informação, o medo permanente da apropriação e disseminação desregrada de informação por outros, a metamorfose dos corpos, objectos e identidades à medida dos tempos e espaços da realidade virtual… “Under the clouds” evolui por núcleos temáticos informais – uma grande narrativa aberta, de contornos elásticos e em que cada zona porosa dialoga e é permeável às anteriores e seguintes. Uma espécie de loop imperfeito que formalmente começa nas “Nuvens prateadas” de Andy Warhol (1966), mas cuja primeira visão, logo ao entrar, são as múltiplas projecções simultâneas que compõem o “Movie Mural” (1968) de Stan VanDerBeek.

É uma perspectiva utópica – com vista para a capacidade dos artistas para moldar a ciência e a tecnologia à forma – e ética – de aplicações humanistas. Demonstra, como diz o curador da exposição, a hipótese aberta pela arte de criação de uma linguagem universal visual. Hoje, porém, talvez seja inevitável ler neste “Mural” as potencialidades, mas também as ansiedades, suscitadas pela experiência de simultaneidade aberta pela “cloud”, dentro da qual toda a experiência do mundo se funde num contínuo mais ou menos abstracto, mais ou menos deshierarquizado. 

Ou talvez seja esta a leitura a que a exposição nos conduz sub-repticiamente por ser precisamente o tipo de experiência de conteúdos que nos proporciona através da montagem. E não só devido aos seus fluxos temáticos. Talvez sobretudo pela forma como diferentes sonoridades trespassam e saturam o espaço.

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Em Touching Reality (2012) Thomas Hirschhorn questiona a nossa responsabilidade perante as imagens, agora que o nosso toque as altera, revela pormenores e os esconde FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Aqui, contraria-se a tendência de conter o som produzido por vídeos e outras obras sonoras confinando-o aos limites próximos da sua origem e evitando que contamine as outras presenças. Em Under the Couds o som não é reverente, não é uma presença cem por cento domesticada, educada ou politicamente correcta – não respeita completamente.

Uma estratégia para evocar a saturação de dados e a cacofonia digital – talvez seja a leitura mais óbvia. Ribas propõe uma perspectiva mais subtil: “O som não respeita o primado do público e do privado. Atravessa paredes, tanto literais como metafóricas. O som nesta exposição fala disso, de não ser assim tão fácil separar público e privado.”       

Na primeira sala da exposição o som de Estudo para o fim de um mundo nº. 2 (1962), de Jean Tinguely, acompanha-nos perante obras de artistas como Gregory Corso, René Bertholo, Thomas Bayrle, Hans-Peter Feldman, Ângelo de Sousa, Silvestre Pestana, Horst Ademeit e Martha Rosler. Na sala seguinte, o Global Groove (1973) de Nam June Paik derrama-se sobre Thomas Ruff, Seth Price, Pratchaya Phinthong, Carla Filipe, Rachel Harrison e Neïl Beloufa. Da mesma forma que a letra das músicas dos Two Audio Files de Darren Bader contamina não só outras obras do mesmo artista como trabalhos de Adel Abdessemed, Pedro Henriques e Katja Novitskova.

De certa forma, a instalação vídeo Reifying Desire (2014), com animação 3D, de Jacolby Satterwhite constrói um mundo à parte. Exposta numa sala própria no piso superior do museu, combina imagens de registos de performances do artista com imagens virtuais. Propõe-nos um mundo onírico em que, liberto de quaisquer constrangimentos, o humano se reconstrói a partir da sua própria subjectividade, cortando com determinismos essencialistas, imperativos biológicos e formas de construção ou identificação binárias de género, sexo e sexualidade.  

Talvez seja o culminar da sociedade do espectáculo: uma dimensão em que o modelo do eu é ele próprio flutuante e se desenvolve digitalmente, com múltiplas identidades e várias vidas simultâneas. Ribas diz que podemos hoje “voltar ao futuro que não aconteceu e imaginar passados que foram perdidos”: “Temos na nossa mão a possibilidade de trabalhar isto.”

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