A vampira de véu

Algumas das imagens são de facto poderosas, mas é sobretudo o ambiente de certas cenas que fica na memória.

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A mitologia dos vampiros continua inesgotável — agora em cenário iraniano DR

A mitologia dos vampiros parece de facto inesgotável, e encontramo-la declinada das maneiras que menos se esperam.

É o caso deste Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa, primeira obra de uma cineasta iraniano-americana, filmada com actores de origem iraniana, a reproduzir um Irão imaginário (em todos os sentidos) mas inteiramente rodada na Califórnia. Temo-lo visto descrito — por causa da “bolsa cultural” de onde germinou — como um “filme iraniano”. Se a importância da questão identitária não se põe em causa, mesmo na ambiguidade com que se imagina um Irão “alternativo”, genealogicamente o filme pouco terá de iraniano: Ana Lily Amirpour revela-se bem aculturada, o seu filme descende, à evidência, de uma tradição do cinema “independente” americano (Jarmusch à cabeça, do interesse pela miscigenação cultural ao preto e branco muito contrastado reminiscente dos de Down By Law ou Homem Morto) polvilhada por um espírito de western de subúrbio (todos aqueles planos com um fundo de paisagem industrial).

Se são intrigantes o toque vingativo da “vampira de véu”, entre uma espécie de moralismo exacerbado num ambiente corrupto (a cidadezinha onde tudo se passa chama-se Bad City e também não seria disparatado ver neste nome uma referência à célebre Sin City, até porque a BD não parece um universo estranho a Amirpour) e um toque levemente feminista (a cena do dedo arrancado à dentada ao chulo) que pode ou não reflectir o “machismo” da sociedade iraniana, também há uma tendência para o simbolismo “iconográfico” que corta um pouco o horizonte ao filme. Algumas das suas imagens são de facto poderosas nesse sentido da iconografia, mas é sobretudo o ambiente de certas cenas que fica na memória, um estado de sonolência hipnótica mas possuído por uma energia qualquer (como no bailado entre a vampira e o seu par, que traz à memória o Jarmusch “vampiresco” deSó os Amantes Sobrevivem), e onde o bricabraque cultural — músicas populares iranianas em alegre diálogo com música pop dos anos 80 — se revela elemento fundamental na construção de uma estranheza. É por ela, pela estranheza, que mais vale a pena espreitar o filme.

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