A última derrocada

Depois de Negomano, os alemães assaltam Nanguar, daqui saltam para a serra Mecula e num ápice toda a linha defensiva construída em 1917 caiu como um castelo. Desbaratado o exército português, as tropas do mestre guerrilheiro von Lettow entram em Moçambique, onde passariam dez meses. Agora, a defesa da colónia estava nas mãos dos ingleses. De regresso a Lisboa, o alto comando dedicava-se a tentar perceber o nexo de tantas derrotas. E a preparar golpes contra os culpados da República.

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E começou: desde que as tropas alemãs começaram a desbaratar as linhas defensivas portuguesas em Negomano, a 25 de Novembro de 1917, nunca mais tivera contacto com os seus comandantes; que fora o único oficial português a escapar incólume à razia alemã; que tinha conseguido transferir a companhia que comandava nos Montes Macolos, na frente ocidental, quase junto ao lago Niassa, para a base segura de Unango; que se juntou às forças britânicas do coronel Clayton com as quais combateu os alemães; que aí, semanas antes, soubera que as tropas portuguesas estariam em Muirite; que, depois de entregar a sua companhia a outro oficial, passou “19 dias pela floresta lutando pela vida” até ao limite, até se poder apresentar aos seus superiores.

A vida errante de José Teixeira Jacinto pela selva do Niassa, pelas escarpas de Nanguar, no caminho para os montes Macolos e no regresso até ao conforto de uma base portuguesa durou dez meses e fez-se ao longo de mais de 2000 quilómetros a pé. Quando chegou a Muirite, já as tropas portuguesas se tinham transformado num apêndice das manobras do exército inglês, que agora liderava o combate aos alemães instalados bem no coração da colónia portuguesa. O que restava da expedição de 1917, a quarta que Lisboa enviou para a frente do Rovuma, acumulava-se nos quartéis à espera do final das suas comissões de serviço. A imprevidência, incapacidade e incompetência que soldados e oficiais tinham mostrado transformaram-nos em mais do que num peso morto para a guerra em África: tinham sido até preciosos aliados dos alemães, que com delícia se apropriaram de toneladas de armas, munições, víveres, medicamentos e carregadores que os portugueses deixavam nos campos de batalha onde foram derrotados.

Para José Teixeira Jacinto, o regresso a uma base portuguesa era redentor. O que passara nos últimos meses raiava o limite da capacidade de resistência. Nas suas viagens vira e vivera um pouco de tudo: penou com a morte de companheiros, estarreceu-se com os corpos esventrados após ataques de leões, passou fome e sede, assistiu e obedeceu a ordens e contra-ordens de um comando desnorteado e incompetente, caçou hipopótamos para comer e uma jibóia de seis metros e meio para lhe guardar a pele, mandou pilhar comida aos indígenas, cavou trincheiras, enterrou e desenterrou alimentos escondidos aos alemães e, no final, manteve uma luta renhida com o Estado para reclamar o Colar da Ordem da Torre e Espada pelo seu heroísmo em Moçambique que, por engano, fora entregue a outro oficial. Porque afinal ele comandou a única companhia que se salvou da razia do ataque alemão de Novembro de 1917 e foi até capaz de a guiar até uma base inglesa onde permaneceria em campanha.

Quando a Coluna do Lago chegou a Nanguar, em Outubro de 1917, Teixeira Jacinto teve razões para suspeitar que o calvário das caminhadas pela selva iria continuar. Aí soube que passaria a ser o comandante da 2.ª Companhia Indígena da Beira, que treinara. E soube também que tudo aquilo por que passara não entrava nos planos do seu novo comandante. Na primeira reunião formal com os seus oficiais, o major Feio Quaresma que acabara chegar do litoral a Nanguar, deixara um aviso sério e grave: “A ordem e a disciplina serão a divisa deste comando e não admitirei que elas se discutam, mas apenas que se cumpram (…) Para aqueles que ousem retroceder, ou no momento de perigo tentem voltar as costas ao inimigo, eu tenho esta pistola para os obrigar a retomar a frente ou para os abater como se abatem os cães traidores”. Entre os oficiais gera-se uma vaga de indignação e de fúria. Feio Quaresma sugeria que aquela coluna de maltrapilhos precisava mais de um chefe duro do que fardas e alimentos. Fazia-o desprezando o capitão Henrique de Melo, o comandante da Coluna do Lago, que estava gravemente doente.

Como se a falta de apoio a uma multidão de homens que acabara de vaguear 900 km pela selva não bastasse, Quaresma acrescentaria que, doravante, a própria Coluna do Lago deixaria de existir. Iria ser fundida com as tropas que vinham com Quaresma no Destacamento de Nanguar que, 15 dias depois de ser criado, estava pronto para marchar para a frente. Era composto por 36 oficiais, 63 sargentos, cabos e soldados europeus, 1167 soldados indígenas, 250 soldados irregulares, 50 sipaios e guias, três caçadores e 1500 carregadores. Eram ao todo 3069 homens, uma força considerável, capaz de combater de igual por igual com as temíveis forças do general alemão Paul Emil von Lettow-Vorbeck, que se suspeitava estarem a caminho do território colonial português.

Mas, numa decisão incompreensível, logo a seguir o quartel-general decide repetir os erros da Primavera de 1916. Em vez de apostar em núcleos defensivos fortes, decide-se pela multiplicação de pequenos destacamentos isolados ao longo de uma fronteira enorme. As trincheiras que a 2.ª Companhia Indígena comandada pelo alferes Jacinto tinha cavado em Puxa-Puxa, na zona da serra Mecula, não seriam ocupadas pelos seus homens. Eles teriam de regressar ao caminho, de fazer mais uns 450 quilómetros por território desconhecido até os Montes Macolos, que os indígenas conheciam por Guala-Guala, no extremo ocidental do Niassa. Levariam comida para 30 dias de marcha e 46 mil cartuchos de reserva. Teriam de construir aí uma fortificação e vigiar a margem direita do Rovuma numa extensão de dois dias de marcha para cada lado do seu posto.  

“O novo comandante”, seguindo “uma política muito sua, segundo uns, cedendo às exigências de uma política partidária, segundo outros, ou a uma política internacional imposta pelos nossos aliados ingleses, segundo muitos, distribuira uma série de telegramas, ordens e contra-ordens, esfacelando todo o nosso dispositivo, disseminando-o em pequenos núcleos dispersos por toda a província, mas sem autonomia, sem ligações nem condições de defesa possíveis”, criticaria o sargento Cardoso Mirão nas suas memórias da guerra. Se Jacinto foi para os Macolos, a 4ª Indígena da Beira, as metralhadoras, com os tenentes Viriato de Lacerda e Benard Guedes e o médico Valadares, ficariam na serra Mecula; o capitão Curado e alguns dos seus sipaios regressaram por breves dias a Nanguar, onde ficariam a guardar 200 mil cartuchos e 150 toneladas de géneros; e o major Quaresma, com todo o seu estado-maior, a 3ª Companhia da Beira e a 21ª indígena partiram para reforçar Negomano. Era a guerra nos trópicos a ser feita com “a táctica de gabinete exportada pela nossa burocracia das 'Arcadas'”, criticaria Cardoso Mirão.

Dia 7 de Novembro de 1917, José Teixeira Jacinto está novamente em marcha. Não levava panos nem dinheiro para negociar com os indígenas. Não tinha sequer um mapa rudimentar que lhe indicasse o caminho. Até atravessar a serra Mecula levaria como guia o filho do régulo de Puxa-Puxa. Depois ficaria entregue à sua sorte. Em Maziúa, onde chega após seis dias de marcha, visita o posto onde os alemães abateram o 2.º sargento enfermeiro Costa, em Agosto de 1914. A caminho para Mecaloge, as tropas regozijam-se com um banho retemperador no rio Lichiringo e excitam-se com o abate de uma jibóia com seis metros e meio de comprimento. Nas terras do régulo Missé, Jacinto notaria o regresso das febres que atacam com força os soldados brancos da expedição. Um deles pedia-lhe: “Meu alferes, puxe da pistola e dê-nos um tiro ou abandone-nos que lhe perdoamos a morte”. Já não havia quinino. Os doentes seguiriam em machilas transportadas por carregadores negros.

Dia 24 de Novembro, Jacinto chega à sua “encantada posição”. Estava a 700 km de selva do quartel-general em Chomba, a 500 de Negomano, a 400 da serra Mecula, a 70 dos montes Oizulo. Estava, portanto, isolado do mundo e da frente. Para enviar uma mensagem para o chefe do Destacamento de Nanguar, em Negomano, seriam necessários 15 dias de viagem em cada sentido. As más notícias, porém, correm céleres e a que dava conta da devastação alemã em Negomano, a 25 de Novembro, chegara menos de dez dias depois. Nem duas semanas após a sua instalação nos Macolos, Jacinto pressente que toda a linha defensiva do Rovuma, na qual a sua companhia ocupava a posição mais ocidental, entrara em colapso.

O princípio do fim

Depois de Negomano, os alemães correram para Nanguar, onde entram de surpresa – supostamente o chefe do posto, alferes Salgado, e o do depósito, tenente Mesquita, estavam a dormir, embora as memórias do general alemão Lettow-Vorbeck refiram que o capitão Stermmermann teve de cercar os depósitos “durante dias” e que o seu perímetro foi “valente e vigorosamente defendido”, acabando por sucumbir apenas depois de acabar a água aos sitiados. É para lá que o comandante alemão marcha em ritmo acelerado desde Negomano, chegando a Nanguar “a tempo de superintender na divisão das provisões capturadas”. Os alemães voltam a deliciar-se com uma dádiva preciosa para a sua capacidade de manter a guerra em África. “Rearmámos quase metade das nossas tropas com espingardas portuguesas, e fez-se uma lauta distribuição de munições. Apoderámo-nos de cerca de 250.000 carregadores, número que se elevou a um milhão durante o mês de Dezembro”, notaria nas suas memórias o general Lettow-Vorbeck após o assalto ao depósito de Nanguar.

Daqui, o próximo objectivo dos alemães era a serra Mecula, onde, de acordo com os planos iniciais do quartel-general português, se deveria criar uma força suficientemente sólida para travar uma invasão alemã cada vez mais provável após a derrota que os britânicos lhes impuseram em Masasi, no final de Outubro. Desde esse momento crucial que os soldados portugueses ali se tinham concentrado na missão de construir uma barreira inexpugnável. O local não podia ser melhor. Havia o declive da serra na qual “a água brotava espontânea por entre as fragas onde nós alcandorávamos”, na descrição de Cardoso Mirão. E a escassa distância, na povoação do régulo Puxa-Puxa, junto a um pequeno rio, os soldados puderam abrir um extenso campo de tiro e construir abrigos e trincheiras de ligação. Um trabalho que deixou os soldados embevecidos. “É digno de nós, e podemos afirmar que estamos apostados em fazer frente ao inimigo, com todas as vantagens a nosso favor”, notava Cardoso Mirão.

No vaivém das ordens e contra-ordens que denunciava falta de planeamento e insegurança, Mecula e Puxa-Puxa ficariam relativamente desprotegidas quando as suas forças foram encaminhadas para o atoleiro de Negomano e para os postos estabelecidos à pressa a ocidente. Nada faria por isso prever que, depois das facilidades de Negomano e do assalto a Nanguar, Mecula se transformasse num dos raros momentos de relativa glória do exército português. A 3 de Dezembro de 1917, um destacamento alemão comandado pelo general Kurt Wahle lança as primeiras tentativas para conquistar as posições portuguesas na serra. Encontra uma tenaz resistência. Para Cardoso Mirão, ali se escreveria “a página mais brilhante de nossa acção em África”. A guarnição portuguesa, mesmo estando em inferioridade numérica, resistiria ao assalto dos alemães durante quatro intermináveis dias. A 8 de Dezembro, por volta do meio-dia, as munições dos sitiados estavam a acabar. Os alemães começam a usar a artilharia que entretanto fora desviada para o local. A resistência duraria apenas mais alguns momentos.

O que aconteceu na serra Mecula, dizem-no todas as memórias e relatórios oficiais, explica-se pelo facto de, por uma rara vez, as tropas portuguesas terem manifestado vontade de combater. Mais, combateram com método e organização. O que só se explica pelo perfil e currículo do seu comandante, o capitão Francisco Curado, um oficial experimentado das campanhas de 1916 na travessia no Rovuma ou da conquista/fuga do forte alemão de Nevala. Ou de por lá andar o tenente Viriato de Lacerda, um oficial já com dois anos de guerra que se recusara terminar a sua comissão de serviço em Moçambique. Viriato de Lacerda seria abatido por soldados alemães do destacamento Wahle quando tentava destruir uma metralhadora para evitar que caísse nas mãos dos alemães. O seu funeral nas faldas de Mecula mereceu honras militares dos alemães. O governador da África Oriental Alemã, Heinrich Schnee, esteve presente. Postumamente, Viriato de Lacerda seria promovido e agraciado com uma Cruz de Guerra “pela sua grande valentia, sangue frio, desprezo pela vida e acrisolado patriotismo”, lê-se numa Ordem do Exército datada de 27 de Agosto de 1920.   

A partir da conquista da serra Mecula, já não havia salvação possível para o exército português. Perdera todas as condições de se recompor e de retomar a sua organização defensiva. A surpresa e eficácia do ataque alemão transformaram as suas companhias numa multidão em debandada. O capitão Francisco Curado apercebe-se da gravidade da situação e, a 6 de Dezembro, em pleno assalto a Mecula, envia um ofício para José Teixeira Jacinto no qual o avisa que “o inimigo tomou Negomano apoderando-se de grande quantidade de víveres e material de guerra e fazendo prisioneira toda a guarnição”. Em consequência, Francisco Curado ordena-lhe que retirasse “para um lugar que julgue conveniente, mandando destruir todos os depósitos de géneros que possua”. Enquanto a ordem era cumprida, os refugiados da ofensiva alemã iam chegando às posições ocupadas pela 2.ª Companhia Indígena da Beira, nos Montes Macolos. A 15 de Dezembro, eram já 350, “quase todos com aspecto esquelético, devido à fome que tinham passado”.

Dois dias depois, a 17, calmamente, o grosso da coluna comandada por von Lettow avança para o interior do Niassa e instala-se em Metarica. A estação das chuvas estava a chegar e uma missão enviada pelo general bóer Jacob Van Deventer, que o convida a uma rendição honrosa, era a melhor prova das dificuldades dos seus inimigos. A instalação do grosso das suas tropas em território português (só a coluna do capitão Taffel se tinha rendido depois de andar perdida a Norte do Rovuma), colapsara a estratégia britânica e portuguesa. A lama que em breve alagaria as estradas e os trilhos, a água que impediria a travessia dos rios e a circulação nas ravinas, jogava agora a seu favor – no ano anterior tinha salvo a vulnerável base portuguesa em Palma de um ataque que seria tão fácil como fatal. Para o perseguirem de novo com forças capazes, ingleses e portugueses teriam de investir em meses de preparação.

Em Metarica, Lettow cura as sequelas de um ataque de matacanha, um insecto que na descrição do alferes médico Pires de Lima, um dos integrantes da terceira expedição, “tem o péssimo hábito de, quando fecundada, perfurar a pele e introduzir-se, de preferência, debaixo das unhas dos pés” onde “o seu ventre cheio de ovos incha até atingir as proporções de uma ervilha, o que dá sempre incómodos e, por vezes, complicações graves”. Tem todo o tempo do mundo para recuperar e preparar uma nova fase da sua campanha. Organiza uma linha de produção de salsichas para fazer esquecer o consumo de carne de hipopótamo. Teve até possibilidade de semear algum cereal. De resto, os ajauas que viviam na região, notou o historiador francês René Pélissier com base nas memórias alemãs da guerra, acolheram os alemães como salvadores da crueldade e violência dos portugueses.

Durante este período de relaxamento alemão, José Teixeira Jacinto trabalhava sob as ordens dos ingleses. Até Março de 1918, ele e os seus os soldados participam em missões de reconhecimento ou em operações logísticas. Havia três meses que deixara os Montes Macolos, arrastando-se e arrastado a sua companhia e a horda de fugitivos que acolhera até à base de Unango. Uma pequena força avançada dos ingleses tinha-se entretanto aí instalado e assistiu à sua chegada. “O aspecto da força mais os fugitivos era desolador, pelo que fomos apelidados de ‘Companhia Pirata’, todos com o cabelo e barba de mais de dois meses por cortar, idem os fatos e o calçado dos europeus a cair aos pedaços, e os soldados indígenas quase todos seminus, sendo os casacos tristes farrapos em cima do dorso. O oficial inglês ficou espantado”, escreveu o alferes em 18 de Dezembro. Acedendo ao convite do chefe civil da localidade, Jacinto instala-se no forte. No final dos anos de 1960, esse mesmo lugar seria chefiado pelo seu neto, o coronel na reserva Armando Jacinto, na altura capitão, sem que este imaginasse sequer a coincidência.

Nas bases portuguesas, primeiro em Chomba, depois Mocímboa da Praia e mais tarde em Porto Amélia, o desnorte é total. Durante cinco meses ninguém soube o que acontecera à 2.ª Companhia Indígena da Beira nem aos sobreviventes que se lhe tinham juntado. Muitos acreditavam que tinham morrido. Sobre eles contavam-se já lendas. Finalmente, a 15 de Março de 1918, José Jacinto recebe um telegrama assinado pelo comandante Sousa Rosa: “Um abraço para todos vós e todos os camaradas. Felicito a vossa conduta”. Uma “alegre notícia”, que provava que “as forças portuguesas não tinham sido totalmente aniquiladas, como se dizia”, escreveu Jacinto.

Na primeira oportunidade, o alferes trata de planear o seu regresso ao quartel-general português. Entrega o comando da 2ª Companhia a Paulo Bernard Guedes, que tinha ficado prisioneiro dos alemães na serra Mecula e viria a ser Governador-geral na Índia nos anos 50. No final de Março parte para a sua última grande travessia do território do Niassa com seis carregadores, um 2.º cabo, dois soldados indígenas e um guia. Jacinto e os seus companheiros percorreram nessa última etapa talvez 500 quilómetros até Muirite. Como nas anteriores deambulações, o seu relato da viagem está repleto de referências a momentos de fome, de cansaço, de desespero. Foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que o abasteceram, o alimentaram e lhe permitiram saber, via TSF, que a guerra na Europa estava a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente.

O “grande safari” alemão

Enquanto Jacinto caminhava para leste, Von Letow dirigia-se para Sul. Em Abril está de novo em Maúa, onde menos de um ano antes o alferes Jacinto se horrorizara com o castigo imposto aos indígenas da região pela sua colaboração com os alemães. Daqui começaria o que René Pélissier designaria por “Grande Safari”. Desde o final de 1917 que os ingleses concentravam forças em Porto Amélia. No outro extremo de Moçambique, as tropas britânicas e africanas passam o Niassa e criam uma nova frente a leste. Para coroar esta estratégia, os portugueses fariam uma barreira no rio Lúrio, a sul. Entre Abril e Maio sucedem-se pequenas escaramuças entre as colunas avançadas dos três exércitos. Quando percebe que o cerco se aperta, von Lettow-Vorbeck inventa mais um dos seus golpes de génio. Deixa para trás os seus feridos e tudo o que travava a mobilidade da coluna, fura a barreira do Lúrio, atravessa o rio a vau e, em Junho, já está pronto para atacar uma fortificação portuguesa no distrito de Quelimane, apanhando “os oficiais a tomar café na varanda do posto".

A notícia da presença alemã naquela zona gerou um novo alarme na colónia. Como recordaria o general Azambuja Martins nos seus escritos sobre a Primeira Guerra em África, uma coisa era os alemães atacarem pequenas aldeias de palhotas no Niassa; outra, diferente, era pôr em perigo Quelimane e ameaçar a Zambézia, um dos pilares económicos da colónia. Era, no entanto, para aí que o que restava da Schutztruppe de von Lettow-Vorbeck caminhava. No final de Junho, a coluna avançada dos alemães estava já nas margens do rio Licungo, a uns 40km de Quelimane. Na margem sul, em Namacurra, onde terminava um ramal de caminho-de-ferro que seguia até Quelimane, cria-se uma linha defensiva com três companhias portuguesas e duas inglesas. O comando inglês sossega as hostes e, a 30 de Junho, avisa que “não há notícias do inimigo” e mesmo que houvesse “o Rio Licungo não se pode atravessar a vau". Um dia mais tarde, os soldados da guarda avançada do capitão Müller desfazem a convicção e atravessam-no com a água pelo pescoço.

Ainda nessa tarde os alemães começam a assaltar os três quilómetros de trincheiras construídos à pressa em Namacurra. No primeiro dia, os portugueses resistem durante três horas de árduos combates ao avanço alemão, numa façanha que seria elogiada pelo general Van Deventer no seu relatório. Dois oficiais e um sargento são abatidos. Onze oficiais são prisioneiros. No dia seguinte, o combate, agora com von Lettow-Vorbeck a comandar os alemães, foi mais equilibrado. Mas na madrugada do dia 3 de Julho de 1918 uma nova ofensiva desgasta as posições defensivas dos aliados e, pela tarde, a artilharia alemã entra em acção. Gera-se o caos. Portugueses e ingleses fogem em desordem para o rio, onde uns 100 soldados africanos e quatro europeus, entre os quais um tenente-coronel britânico, morrem afogados. Uma vez mais, von Lettow-Vorbeck sairia invencível. Como troféu, apreenderia em Namacurra equipamento militar moderno, incluindo metralhadoras, umas 500 toneladas de bens essenciais e até um vapor com abastecimentos que entretanto subira o Licungo em socorro das tropas aliadas.

Quando a notícia chega a Quelimane, o medo instala-se. A cidade estava indefesa, perdera a sua única barricada em Namacurra. O coronel Sousa Rosa ordena a retirada de mulheres e crianças. Os bens existentes nos bancos são arrolados e enviados para sul. Suspeita-se que o próprio Sousa Rosa se terá retirado para lugar seguro, versão que este refutaria mais tarde. Todos os homens válidos são alistados. Alimentando-se da turbulência, os alemães sabem como instigá-la. Fazem saber que é para Quelimane que se dirigem. Pura manobra de diversão. Reabastecidas, as colunas de von Lettow-Vorbeck recuam até Angoche. Daí, em vez de rumarem a Nampula ou Moçambique, inflectem para o interior e prosseguem no território que melhor conhecem e que, desde o início, melhor as acolheu: o sertão e a selva.

Em Setembro, dez meses depois de Negomano, que estreou a sua viagem pela colónia portuguesa, os alemães atravessam de novo o Rovuma junto à foz do Luchiringo e embrenham-se nos territórios da Rodésia (actual Zimbabwe). A cada dia que passa vão perdendo capacidade operacional. A 18 de Outubro von Lettow-Vorbeck vê-se obrigado a deixar no caminho o velho general Kurt Wahle, o artífice da vitória na serra Mecula, por doença. A 2 de Novembro, a coluna ainda tem vigor para atacar um forte e roubar 400 bois aos britânicos. Mas quando a 12 de Novembro um motociclista enviado pelas tropas inglesas apanha o comandante alemão a andar de bicicleta e lhe comunica o fim da guerra, os alemães eram uma força limitada a 176 europeus e 1487 soldados indígenas. Ainda assim, no dia seguinte, no acto de rendição, o general alemão ofereceria como prova do seu poder bois aos ingleses famintos. Rendera-se com a paz na Europa, sem nunca ter sido derrotado com a sua reduzida força de europeus e askaris por um conjunto de exércitos que, na avaliação que os próprios ingleses lhe transmitiram, mobilizara 137 generais e uns 300.000 homens.

Depois de os alemães atravessarem o Rovuma, a guerra estava acabada para os portugueses. Sousa Rosa pedira a exoneração e chegara entretanto a Lisboa com a fama de “cobarde”, até mesmo de “traidor”. O seu longo relatório, que os altos comandos tratariam de subscrever, dirigiria todas as culpas por mais uma expedição que falhara do primeiro ao último momento para o Governo e para o regime da República. Em Muirite, José Teixeira Jacinto fora por essa altura declarado incapaz de continuar no activo por “fraqueza geral, paludismo, bronquite e uma hérnia inguinal direita” e fica à espera de embarque para Portugal. Entretanto, foi convidado, e aceitou, montar um posto de etapas. Antes do final de 1918, adia de novo o regresso para administrar o concelho de Amaramba, junto ao Lago Niassa. O pior tinha passado. Em 23 de Novembro desse ano passa à reserva com o posto de capitão e foi nessa condição que se prestou à sua última grande batalha: reclamar a condecoração de Cavaleiro da Ordem de Torre e Espada que tinha sido entregue a um oficial que se tinha limitado a trazer a sua companhia desde o Unango até Mocímboa da Praia. O Exército reconheceria o erro em 1931, mas, por falta de verbas, o colar da Torre e Espada com palma só seria entregue em 1947. Dois anos depois de ter falecido, aos 64 anos.

Quando o general Gomes da Costa chegou a Moçambique à frente de uma nova expedição, já o armistício tinha sido assinado na Europa. Estava na hora de voltar a “pacificar” os indígenas sobressaltados com o apoio alemão e acertar as contas com os responsáveis por três anos de derrotas sucessivas, o que o general fez com especial zelo no seu livro A Guerra nas Colónias, que publicaria quatro anos antes de encabeçar o golpe de 28 de Maio de 1926 que acabaria com a Primeira República. Mas se o general pôde dedicar-se a enumerar esse interminável rol de erros, omissões e fraudes e a avaliar a dimensão da falta de organização, a negligência e a incompetência, o Estado Novo trataria de evitar que outros o fizessem – Kináni, Quem vive?, a memória de Cardoso Mirão, só seria publicada em 2001. Depois do surto de memórias que se se sucedeu logo após o final da Guerra, o novo regime empenhou-se em esquecer esses dias sórdidos em Angola e, principalmente, em Moçambique. Os cemitérios abandonados e profanados onde os restos mortais das vítimas desses erros apodrecem ao ar são a prova de que esse esquecimento ainda continua.  

Próximo artigo: ensaio do historiador Filipe Ribeiro de Meneses
 

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Uma picada em Negomano
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O Monumento aos Mortos de Negomano em Mueda
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Em Setembro, dez meses depois de Negomano, os alemães atravessam de novo o Rovuma
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Uma travessia no rio Rovuma
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José Jacinto foi encontrando pequenos pelotões de portugueses que lhe permitiram saber, via TSF, que a guerra na Europa estava a um passo do fim. Soube também que tinha sido promovido a tenente. Aqui posto de TSF em Nacarute AHM
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