A tragédia negra de um monumento branco

Um monumento icónico, luminoso e desprezado às portas de Paris: o Grande Arco de La Défense. Um arquitecto apaixonado pela pureza, que morreria sem ver a obra concluída. Um Presidente da República possessivo e tóxico. Um romance poderoso: La Grande Arche, de Laurence Cossé.

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Eis uma virtude do romance: revelar a intimidade, a humanidade de um monumento, perante o qual todos os anos passam milhões de pessoas sem nada suspeitar Dmitri Kessel/The LIFE Images Collection/Getty Images

“De uma beleza de cortar a respiração. Colossal, mas não em demasia. De um branco cor da neve sob o azul do céu. Deslumbrante, na verdadeira acepção da palavra, a ponto de ferir os olhos. De proporções perfeitas, é dizer pouco: a perfeição ponderada (...) Essencial. Impedindo que hoje se imagine um outro monumento em lugar tão fulcral.” A primeira dificuldade em tentar transmitir ao leitor a riqueza de La Grande Arche, de Laurence Cossé, é saber por onde começar, tão densa e rica é a obra. Podíamos começar com a descrição de Cossé. O arco é personagem central deste romance editado pela Gallimard e não publicado em Portugal. É uma proeza literária, consegue tornar límpidas as etapas técnicas da construção de um monumento, sem o recurso a desenhos ou fotografias. Fala de arquitectura, de materiais, de desafios mecânicos e físicos, sem perder o leitor neófito. Magistral.

Mas La Grande Arche [O Grande Arco] é mais do que a narrativa cronológica da edificação de um monumento. É também crónica de um choque de civilizações. A alma dinamarquesa — um arquitecto, Johan Otto von Spreckelsen — contra o espírito francês. Um país igualitário e rigoroso contra outro, filosófico e boémio. Laurence resume: na Dinamarca, “ninguém pode reivindicar que é mais capaz, mais sábio, mais interessante do que qualquer outro, nem superior, nem único. Não é necessário procurar destacar-se, menos ainda dominar ou possuir mais do que os outros. Deste modo, todos e cada um serão felizes”. Portanto, um país decididamente igualitário e o primeiro do mundo “a permitir a união civil aos casais homossexuais, em 1989, seguido do casamento, da adopção e do casamento religioso pela Igreja Luterana, a religião oficial do Estado”.

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O trabalho do jornalista é duplamente árduo se quiser reconstituir estes dois aspectos do livro. É neste ponto que surge um terceiro ângulo, o mais importante: a história do Grande Arco do ponto de vista do criador, Johan Otto von Spreckelsen, o arquitecto dinamarquês que emerge do anonimato após ganhar o concurso para a construção deste monumento no bairro financeiro de La Défense, na região parisiense. É uma figura singular, manifestamente inadequado à grandeza da tarefa: ser de rara elegância, belo, intransigente e visionário. E frágil. O romance narra a sua ascensão, a que sucede a queda, a loucura, a doença e a morte, antes da conclusão da obra. Poderíamos ter começado pelas palavras de Spreckelsen, numa citação que desvenda uma das suas facetas e na qual revela a sua visão de La Défense: “Aqui, é cada um por si — as multinacionais, os bancos, as poderosas sociedades financeiras. Todos se querem impor, para o pior ou para o melhor. Tal pode fazer-se com ou sem elegância. É, ao mesmo tempo, fascinante e repugnante”.

Um romance em que tudo é verdade

La Grande Arche é uma narrativa cronológica rica, na qual se entrelaçam os planos político, técnico, sociológico, emocional e artístico. Quatro longos anos de trabalho da autora, dos quais a maioria de investigação. E, no entanto, é a designação “romance” que consta na capa do livro. Laurence Cossé explica-nos: “Esta incursão, passo a passo, na densidade de uma realidade passada constituiu um longo trabalho que, todavia, nunca me pareceu pesado. Investigar não é nem enfadonho nem difícil: é uma questão de tempo e persistência. O difícil foi obter uma obra de arte de um aglomerado desorganizado de informações, visto que essa é a ambição do romancista. E é tanto mais difícil quando os dados não são imaginários e, como tal, não se podem curvar à imaginação do autor. Escrever um romance em que tudo é verdade pareceu-me mais exigente do que escrever uma ficção”.

Paul Andreu é omnipresente no romance. É um arquitecto francês famoso, nascido em 1938, cujas criações monumentais se encontram disseminadas por todo o mundo: óperas, estádios e aeroportos  — dois exemplos: o Aeroporto de Roissy/Charles de Gaulle, 1967 (tinha 29 anos), a Ópera de Pequim, 1999. Há muito que partilhava as suas memórias com Laurence e também valida a designação “romance” para esta obra. Se é uma personagem decisiva de La Grande Arche é porque Paul foi, antes de mais, designado para ajudar Spreckelsen a constituir um gabinete de arquitectos de combate. Com a evolução da situação, Paul encontrar-se-ia na linha da frente, a desempenhar o primeiro papel sozinho, à medida que Spreckelsen perdia o pé. Estamos perante uma tragédia no sentido clássico: Paul Andreu terá acabado por construir o Arco quando não devia senão assistir o pai do monumento, que acabaria por o renegar e desaparecer sem nunca o ter visto concluído. “Era complicado na época, era muito complicado”, recorda Paul. “Hoje, vejo os acontecimentos de maneira mais lúcida, mais calma, mas nada altera o passado. A memória transforma-se em permanência. Não é uma gravura na pedra. Transmiti as minhas memórias como se se tratasse de peças e ela, a romancista, recriou-as em romance.”

A autora admite que utilizou apenas um quarto das informações reunidas. Foram seleccionadas, hierarquizadas, ordenadas: “Escrever um romance parece-se muito mais com despesas e danos do que com a procura de lucros — tal como viver ou amar”.

Para Paul Andreu também se trata de um romance: “No romance moderno há toda uma tendência para falar do que existe com exactidão — como os romances do francês Jean-Claude Carrère ou do espanhol Javier Cercas. Apoiam-se em factos, investigações, trabalhos, ainda que não sejam obras históricas. Porque o autor, ao recolher os factos, selecciona-os, não tem a pretensão de ser exaustivo, objectivo. Esta abordagem é diferente da de um historiador ou ensaísta. Laurence Cossé pegou nos elementos que quis, colocou-os por uma certa ordem e tudo ao serviço da narrativa da vida desta personagem Spreckelsen, por quem sente grande simpatia: quase sofre por ele. Ela fala dele como romancista. O romance não passa de ficção”.

Esperar um minuto pelo elevador

Spreckelsen é esse homem frágil, esmagado pelos milhares de toneladas de betão. “O mínimo que se pode dizer é que era uma personalidade complexa”, analisa Laurence. “Gosto muito do romance porque permite explorar a infinita complexidade da realidade. Permite dar conta desta complexidade até à contradição. Não me contive neste livro. Quem se pode vangloriar de conhecer o outro? Jean Paulhan [escritor, crítico] proferiu uma frase magnífica a este propósito: ‘As pessoas ganham em ser conhecidas, ganham em mistério’. A pessoa e a maneira de ser de Spreckelsen permanecem, em grande medida, misteriosas. Mas o romance acomoda bem o mistério.”

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Percebem-se melhor os contornos deste homem a partir desta conversa com Paul Andreu sobre os elevadores para subir ao cimo do Arco: “Explicámos-lhe que o tempo de espera médio ultrapassaria em muito um minuto. ‘E depois?’, perguntou ele. ‘Então, todos os especialistas sabem que um tempo de espera superior a 30 segundos é insuportável.’ ‘Quando vêm trabalhar para La Defénse’, perguntou Spreckelsen, ‘as pessoas ficam presas nos engarrafamentos?’. ‘Com frequência, sim.’ ‘E perdem aí quanto tempo?’ ‘Depende. Por vezes, uma hora.’ ‘E não podem esperar um minuto pelo elevador?’”

À medida que a história do Grande Arco se desenrola, Spreckelsen torna-se irascível e incontrolável. Atormentado por angústias, perderá a cabeça, como se escreve no livro: “É preciso imaginar o ambiente, as centenas de operários a trabalhar, o ruído, a poeira. Deslocamo-nos entre os equipamentos, olhamos, colocamos questões. Com os capacetes na cabeça é preciso gritar — de repente, apercebemo-nos de que Spreck já lá não está. Procuramo-lo. Esgueirou-se sem nada dizer. Quando o voltamos a ver mais tarde, não se explica (...) Tudo se passou como se tivesse sido tomado pelo medo”.

Um pouco mais à frente: “Todos usavam capacete. A base do Arco emerge da terra. Spreckelsen estava muito tenso. A certa altura, coloquei-lhe uma questão, à qual não respondeu. Fixou-me com olhos de louco. Estava desvairado. Penso que quebrara. Perdeu a cabeça, como se diz”.

Exasperado pelas modificações que se lhe exigem, por razões de viabilidade, Spreckelsen, num último ataque de consciência, acabará por se desobrigar da obra. Um repúdio puro, simples e sem apelo. Uma fuga quase definitiva. Regressará a França, mas esta será de novo a terra da sua desventura: “Adoece em Paris, ao rever o estaleiro do qual se exilou e o monumento que não quer mais que lhe seja atribuído”. A autora sublinha que este apagamento profissional estava quase escrito, melhor dizendo, não-escrito, porque se trata de um apagamento simbólico fundamental. Ela esquadrinhou minuciosamente centenas de páginas de arquivos: não se consegue encontrar Spreckelsen neles. “Não é complicado, não existe quase nada sobre Spreckelsen nos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros: nada quando ele ganha o concurso em Maio de 1983 (...), nada sobre o triunfo que o seu projecto conhece em Paris (...), nada sobre a sua demissão em Julho de 1986; nada sobre a sua morte em Março de 1987.”

O que se passou, então, para que este Arco, que devia ser o ponto alto da carreira de Spreckelsen, se tenha tornado no seu túmulo? Laurence oferece uma pista no livro: a de uma incompreensão atávica entre as sociedades dinamarquesa e francesa. Poder-se-ia crer que Spreckelsen era superior, dominador, caprichoso, na verdade, duro, orgulhoso e até ingrato em relação a França, que o consagrou e enriqueceu. “Não creio que exista uma única sociedade homogénea”, diz-nos Laurence. “Desconfio das generalizações sobre os povos ou países. Porém, desejei informar-me sobre as características mais evidentes da sociedade dinamarquesa, porque todas as pessoas implicadas na história me pintaram o confronto de Spreckelsen com aqueles a que ele chamava ‘os franceses’ como a incompreensão mútua de representantes de culturas muito diferentes. Spreckelsen era singular, como os grandes artistas o são. A mãe era húngara. Era um católico convicto num país moldado pelo protestantismo. Recebera uma educação não-convencional. Vêem-no como ‘superior’, ‘dominador’, ‘caprichoso’, ‘duro’, ‘orgulhoso’, ‘ingrato’. Era também excepcionalmente elegante e belo, arrojado na sua inspiração, confortável em todos os meios. Anotei no meu livro testemunhos sobre o seu charme, a sua generosidade, a sua simplicidade. Em França, ele foi devorado pela ansiedade, oprimido pelo sucesso extraordinário e imprevisto no concurso num papel de mestre-de-obras que não podia assumir, incapaz de confiar em quem quer que fosse entre os franceses, tal era o preconceito contra a França, em suma, encurralado.”

Mas, então, que acordo impossível é esse entre o espírito francês e a alma dinamarquesa? Laurence mostra-se incisiva no livro: “Temos dificuldade em acreditar nisso, nós, os franceses, que nos vemos muito racionais, organizados e, francamente, muito inteligentes, mas, aos olhos de muitos dos nossos vizinhos, somos apaixonados, idealistas, faladores, inquietos, individualistas, enfim, pessoas pouco seguras. O mais triste é que a realidade deu razão a Spreckelsen e aos seus receios (...) ele fala sem rancor, mas existem declarações decisivas sobre a falta de senso do contrato em França, sobre os atrasos contínuos em fazer escolhas colectivas, sobre a violência dos confrontos entre campos políticos. E sobre isso, ele fala por experiência”.

Quanto à sociedade dinamarquesa, esta será um modelo de rigor, especialmente no seu sentido de contrato. “Sabe-se o que significa o contrato sociopolítico. A partir do momento em que se toma uma decisão em conjunto, quer seja na vida pública ou numa empresa, nada se altera — senão de comum acordo. Os governos são sempre de coligação; quando um sucede ao outro, não se sente obrigado a desfazer o orçamento, as leis, as políticas. Respeitam-se as regras: violá-las custa caro, mesmo para o que os franceses consideram um pecado venial, como, por exemplo, arrumar o carro num local não destinado ao efeito. Não se fecham as portas das casas, nem à noite nem quando se sai pela manhã. As ruas estão cheias de bicicletas sem cadeados. Se alguém esquece a mala no autocarro, recupera-a, no dia seguinte, na secção de perdidos e achados.”

O livro convoca o humor irónico para ilustrar estes antagonismos entre os dois países: “Uma vez uma linha de conduta adoptada, um projecto definido, não se altera mais. A flexibilidade não é o ponto forte da sociedade dinamarquesa. Quando um ministro francês vem à Dinamarca em visita oficial, a agenda está perfeitamente organizada. Mas um ministro francês decide sempre, a dado momento, fazer uma pequena alteração ao programa, por exemplo, um pouco de turismo. E fica atónito: vê-se confrontado com a impossibilidade de colocar um dos veículos do cortejo oficial ao serviço do seu bel-prazer. Na Embaixada de França aprendeu-se a ser adaptável, a lidar com a situação. Adiciona-se ao cortejo um veículo francês que, esse sim, está à disposição do ministro. Os dinamarqueses (...) consideram os franceses latinos agradáveis, com boa comida e vinho, mas, quanto ao resto, pouco fidedignos (...) Funcionamos no conflito, eles não. Quase nunca existem conflitos na Dinamarca, nem sociais nem políticos. É uma sociedade de consensos”.

“Mitterrandie”

Para compreender o contexto do estaleiro, é necessário mergulhar no ambiente de uma época: fim dos anos 80, fim de um reinado crepuscular, o de François Mitterrand, presidente socialista, erudito, visionário, megalómano, manipulador e debatendo-se com uma situação política complicada, uma vez que tinha de conviver com a oposição de direita. Os anos Mitterrand lembram aos franceses um fausto insensato, impensável nos nossos dias, os últimos anos de esplendor da França. Uma época em que já se começava a observar as fricções entre correntes ideológicas e uma realidade económica implacável. Um mundo perdido de onde podiam surgir as mais belas loucuras, por vontade de um único homem, bem como os mais tenebrosos assuntos de Estado. É neste país já consciente do seu declínio que Spreckelsen se encontra mergulhado. Foi para este país longínquo que idealizou o Grande Arco: “Numa zona de torres, Spreckelsen não opta pela excessiva altura, pelo contrário, com o seu cubo ele aposta na largura (...) A mais alta das torres não dura senão breves momentos. Os recordes foram feitos para serem batidos, as torres tornam-se, muito depressa e frequentemente, ridículas. Jogar com a horizontalidade é muito mais forte (...) Outra audácia, outra liberdade, Spreckelsen desejou o vazio. Todos se empenham no preenchimento do espaço, paredes ou espelhos, e ele trabalhou o vazio. No seu quadrado monumental, ele, de certa forma, enquadrou a perspectiva como se mostrasse a própria noção de desenho urbano e grandeza através dos séculos. Com a sua enorme abertura, o Arco é um convite a continuar”.

O romance abunda em descrições desta construção, é conseguido tanto para o apreciador de arquitectura como para o ignorante na matéria: “A Notre-Dame de Paris caberia dentro do Arco, ou dois Arcos do Triunfo; a abertura terá a largura dos Campos Elísios, a base, a superfície do pátio quadrado do Louvre, tendo cada face um hectare; vão ser precisos três hectares e meio de mármore e dois hectares e meio de vidro, 150 mil toneladas de betão, 13 mil toneladas de materiais diversos; o conjunto pesará 300 mil toneladas (...) O estaleiro anuncia-se extraordinariamente difícil e complexo. O desenho simples do Arco exigiu um volume de estudos e cálculos sem precedentes. Representa um cume de dificuldades concomitantes. É um cubo de tamanho colossal e é oco: nunca ninguém construiu tal”.

O Grande Arco não se fica por aqui. Visita de forma detalhada os costumes políticos da época: uma imersão na “Mitterrandie”, 14 anos marcados pelo cunho do Presidente, com o seu fausto, o seu espírito de rei nunca igualados na V República Francesa, as suas intrigas, a sua crueldade, o seu exagero fabuloso e a sua falta de bom senso.

E para erigir este mastodonte branco, o desafio não foi apenas técnico ou tecnológico. Foi político. Robert Lion, defensor desde o primeiro instante do projecto de Spreckelsen, incontornável maestro do estaleiro, tem de fazer uso da sua capacidade de resiliência para progredir, ganhar terreno, influenciar o Presidente, proteger a obra de Spreckelsen. Demonstra artes de diplomacia: “Imaginem, por assim dizer, dois andares por semana... Todos os sábados organizava uma visita ao estaleiro. Levava aos locais o maior número possível de representantes da nomenklatura parisiense. Mostrava-lhes as maquetas. Queria que todos estivessem do meu lado a defender o projecto (...) Em torno desta obra monumental existiram conflitos monumentais. Mas o Arco emergia da terra e era qualquer coisa de magnífico”. Nada se pode fazer sem o consentimento  de Mitterrand, que cerca o estaleiro com uma obsessão espantosa: “François Mitterrand continua a visitar o estaleiro em privado, muitas vezes sem aviso prévio. Coloca o capacete, percorre o sítio, pede explicações sobre o progresso da construção. Diz-se também que visita à noite (...)”.

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O livro de Laurence Cossé é uma proeza literária: fala de arquitectura, de materiais, de desafios mecânicos e físicos, sem perder o leitor neófito. Magistral

Laurence Cossé, diz-nos, impressiona-se com a magnitude da marca de Mitterrand: “Foi omnipresente e, sobretudo, omnipotente. E esta intromissão monárquica num projecto estatal tê-lo-á empurrado definitivamente para a esquerda. Na minha narrativa, regresso incessantemente a este processo a que chamo de corrupção, corrupção que não é financeira, mas política. Será da competência do Presidente da República designar o vencedor de um concurso de arquitectura? De decretar a duração dos trabalhos no estaleiro? De escolher os materiais? De se reunir com o arquitecto quando está descontente?... Compete à supervisão da obra orientar um estaleiro: dependente do chefe de Estado, a supervisão da construção do monumento viu-se impedida de exercer as suas funções correctamente, resultando em decisões inadequadas e em erros que os franceses ainda pagam hoje. Para dar um exemplo: como François Mitterrand combinara com o arquitecto não tratar o revestimento de mármore contra a poluição, não obstante as recomendações dos especialistas, nos últimos meses foi necessário retirar completamente esse revestimento, que tinha pouca resistência e ameaçava cair, aqui e acolá, e substituí-lo por granito. Descontrolo-me quando vejo que nada mudou em França e que o Presidente da República é, ainda actualmente, quem nomeia o administrador-geral da Comédie Française, o director da Villa Medici, em Roma, os directores dos teatros nacionais. É uma síndrome monárquica persistente, totalmente incongruente com uma república moderna”.

É impossível dizer quanto o livro abunda em historietas, divertidas ou cruéis, tantas quantas as pinceladas de verdade. Por exemplo, no Palácio do Eliseu, aonde Spreckelsen levou uma maqueta do Grande Arco e pede, inocentemente, a Mitterrand para se ajoelhar para apreciar melhor a perspectiva vista de baixo. Batem os leques, ondula a assistência, a corte retém a respiração: o Presidente de joelhos? Mas Mitterrand, após uma hesitação, baixa-se e o mundo pode continuar a girar.

E, depois, não faltam os inevitáveis interesses financeiros para complicar mais a situação. O Grande Arco é exorbitante. Tão caro que a oposição não tarda em procurar financiamentos a qualquer preço. Mesmo que implique alterações. Um sacrilégio que, evidentemente, não vinga. Robert Lion bater-se-ia para salvar o Arco. Mas a que preço: “Ignóbil. Uma rixa política como não voltou a acontecer. Descobria esta violência com estupefacção. Florença no tempo dos Médici”.

Eis mais uma virtude do romance: revelar os bastidores, a intimidade, a humanidade de um monumento, perante o qual todos os anos passam milhões de pessoas sem nada suspeitar. Nas palavras de Paul Andreu: “Penso que é importante mostrar às pessoas como nesta época, por detrás de uma obra de arquitectura, existia toda uma série de negociações, mais ou menos claras, mais ou menos visíveis, mais ou menos justificadas. Existe sempre uma espécie de desejo expressado, de satisfação oferecida, de grande insatisfação dos outros, de lutas que são de poder. Em última análise, toda a complexidade que envolve a criação de uma obra arquitectural é muito específica da arte. O cinema praticamente nada se assemelha a tal. No cinema, a luta é no início; os objectos chegam depois. Tanto que, ao longo do surgimento do objecto, da decisão sobre o objecto, o político, o financeiro, todos os homens do poder intervêm. E na era de Mitterrand tal era exacerbado”.

Os tempos mudaram muito. Os concursos públicos e os processos de concurso são fortemente regulamentados e sob uma vigilância de ferro, e, para Laurence Cossé, a história do Grande Arco nunca mais poderá voltar a acontecer em França: “Se o Arco é o que é, esta Porta de Paris tão poderosa e tão singular, é porque Spreckelsen era inexperiente, desarrazoado, desapropriado e de uma presunção louca”.

Actualmente, resta a viúva do arquitecto Spreckelsen, barricada num inquebrável silêncio, recusando entrevistas. Ressentimentos contra a França e contra este Arco que lhe tomou o marido.

Subsiste o perfume de uma época brilhante, um pouco negra ou cinzenta, para sempre perdida, e cujo monumento branco é o eco em pedra. Subsistem Paul Andreu e Robert Lion, sempre atentos ao fado do seu filho distante. E subsiste o Grande Arco, que sofre, no presente, uma renovação dispendiosa. O belo mármore branco não terá resistido à atmosfera ácida de Paris: substitui-se por granito.

Assim que se fecha, com pesar, este poderoso romance, ecoam, por muito tempo, milhares de impressões. E este pensamento agridoce, que subjaz aos grandes monumentos, bem como aos grandes homens: não se podem construir, não existem, sem carregar o seu quinhão de baixeza na medida da sua exuberância.

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