A solidão do homem no momento da escolha

No mais recente romance de Leonardo Padura há um quadro de Rembrandt em Cuba e um passado de culpa e mistério. Hereges é o seu regresso ao policial com o detective Mario Conde no centro de um enredo complexo sobre a solidão da escolha individual

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A conversa com Padura acontece em Lisboa e começa no ponto exacto onde foi interrompida, faz seis anos, justamente no dia em que Fidel Castro passou o poder ao seu irmão Raul Castro SOPHIE BASSOULS/ CORBIS

Aquele foi o dia em que Daniel Kaminsky perdeu a ingenuidade, “o dom de acreditar”.

Não entendia porque é que aqueles homens e aquelas mulheres simplesmente não se atiravam ao mar, tentando uma “última cartada”. Quinze dias depois de terem saído de Hamburgo no transatlântico Saint Louis, convictos de que iam salvar-se da perseguição nazi e ao fim de seis dias no porto de Havana, 937 refugiados judeus - entre eles os seus pais e a irmã mais nova - viam recusado o seu acolhimento em Cuba no que se revelou uma manobra política traiçoeira. A alternativa era regressar ao ponto de partida, ao extermínio quase certo.

Entre uma morte e outra, Daniel, então com nove anos, não percebia porque não escolhiam a que se lhe apresentava óbvia, aquela que lhes dava a possibilidade de vida, por menor que fosse. Não sabia que a escolha em se resignarem podia estar condicionada por um medo que ele ainda não conhecia e que impedia os homens de serem livres na sua escolha pessoal. “O conflito neste romance é o do indivíduo perante as suas decisões”, afirma o escritor cubano Leonardo Padura sobre Hereges, o seu regresso ao policial e à figura do detective Mario Conde depois de uma pausa no género com o aplaudido O Homem que Gostava de Cães (original de 2009 que a Porto Editora publicou em 2011), um romance histórico centrado no assassino de Trótski, Ramón Mercader (1913-1978), e no fracasso de uma das grandes ilusões do século XX.  “Hereges são os que ousam questionar a ortodoxia. Seja religiosa, política, social, de costumes ou ideologias”, continua o escritor de 59 anos, natural de Havana, que escolheu viver em Cuba “apesar de tudo”.

A conversa com Padura acontece em Lisboa e começa no ponto exacto onde foi interrompida, faz seis anos, justamente no dia em que Fidel Castro passou o poder ao seu irmão Raul Castro e uma “nova expectativa” surgia num período histórico que o escritor então classificava de “herege” por lhe faltar crença, qualquer tipo de crença, que é algo que corta qualquer acção que não seja vazia. “Vivemos entre expectativas”, diz Leonardo Padura sobre os cubanos. Continuam. Depois de Castro, com Raul e agora com o anúncio do reatar de relações com o grande vizinho do lado. “Nos últimos cinco, seis anos, houve em Cuba uma série de mudanças, económicas, sociais. Não são grandes mudanças, mas são importantes em relação ao que se passava. Havia como que uma imobilização da sociedade cubana e entrou-se num movimento diferente a partir de 2008. O processo não tem que ver com a macroeconomia, mas com soluções de alguma abertura à pequena empresa privada, à possibilidade de viajar para o estrangeiro, às pessoas venderem e comprar as suas casas. Isso trouxe uma mobilidade económica maior. Mas as pessoas esperam mais, porque quem beneficia com a possibilidade de viajar ao estrangeiro, de montar pequenos negócios ou vender as suas casas, é quem já tem algo. A maioria da população está em condições que não posso dizer que são de pobreza, mas são difíceis. O governo de Raul Castro reconheceu que os salários não chegam e estamos a falar de um país onde 80 por cento das pessoas trabalha para o Estado. Há uma solução que tarda. Por isso o anúncio do reatar de relações entre Cuba e os Estados Unidos criou muitas esperanças que também não terão uma solução imediata. As pessoas vivem entre dois extremos: ou não acreditam ou querem acreditar porque precisam de acreditar.”

E como fica o escritor entre estas crenças? Um cubano também com nacionalidade espanhola, que nunca quis deixar a ilha. Ficar foi uma escolha muito individual, apesar dos riscos de estar numa ditadura e de escrever numa ditadura. Muitos escritores saíram. Ele ficou e tem traçado um retrato do país sobretudo nos romances de Mario Conde, o detective que criou em 1991 e que lhe serve para, numa trama policial, falar da sociedade, da economia, politica, cultura. Quando se lhe pergunta acerca da sua esperança sobre o futuro de Cuba, o sorriso de Padura podia ser como o de Mario Conde, silencioso, a olhar em frente, mas menos desalentado. Ele está entre os da expectativa, “mas…” E o sorriso volta, interrompido por um cigarro. “Até quando, a que custo?” É tudo.

Plano humano e filosófico
Com Hereges, Padura continua no território do romance histórico, mas com um enredo policial. Mario Conde está mais velho, tem 54 anos. Continua a negociar livros antigos depois de ter deixado a polícia, mas o negócio não vai bem. Vive de biscates e da generosidade de amigos quando lhe aparece um homem, Elías Kaminsky, descendente dos judeus que viveram em Cuba. Vem atrás de um quadro de Rembrandt e, através desse quadro, da história da família.

O caso serve ao escritor para explorar várias geografias – Cuba, Miami, Amesterdão – e vários tempos que vão da II Guerra à ditadura de Batista, o início do período soviético, a crise de 90 quando Cuba ficou isolada, os últimos dias da governação de Fidel, e o século XVII na então cidade mais rica da Europa, Amesterdão, com o apogeu da pintura. “É talvez o livro mais complexo de Mario Conde”, refere, um emaranhado de cruzamentos históricos pessoais, culturais que se organiza à volta do tema da liberdade individual. Esse é o projecto político de Padura. “Não gosto de escrever sobre temas que estejam directamente vinculados com a política. Em O Homem quem Gostava de Cães a política meteu-se dentro do livro. Se estou a trabalhar um personagem como Trotski, teria de entrar. Mas neste caso decidi escrever um romance no qual o conflito fosse visto a partir do indivíduo em relação às suas próprias decisões e como essas decisões entram em conflito quando chocam com a sociedade em que se vive. Mas tratei de fazer um plano humano e, de alguma maneira, filosófico.”

No início da ideia havia um jovem cubano que decidia afastar-se das grandes massas e praticar alguma opção individual. A ideia evoluiu. “Dei-me conta de que se escrevesse essa história apenas centrada em Cuba, a leitura iria ser apenas política. Tudo o que sai de Cuba se lê politicamente. Por isso comecei a procurar outros contextos, outros momentos históricos, outras personagens, com um conflito similar e abri o espaço do romance a personagens tão distintas como um judeu sefardita na época de Rembrandt, um judeu que nasce na época da II Guerra Mundial, e um jovem cubano de hoje que pertence a uma tribo urbana, tentando ver como nestas sociedades, nas quais as pessoas gostam de uma grande liberdade, o facto de praticar essa liberdade se revelar um conflito que exige um preço que pode ser muito alto.”

Cuba está lá mas numa perspectiva que permite olhá-la tanto a partir do interior como com o distanciamento de quem a descobre ou a sente como apenas parte de sua identidade, como Daniel Kaminsky, o rapaz que nasceu em Cracóvia e que os pais enviaram para viver com o tio em Cuba, tinha ele oito anos, quando a Alemanha nazi começava a perseguir os judeus. Eles tentariam juntar-se. Conseguiram lugar no Saint Louis e o que seria um visto de residência em Cuba. À chegada os planos foram frustrados. O visto que compraram era afinal uma farsa e pediam-lhes muito dinheiro para ficar. Não o tinham, mas traziam um tesouro, um quadro de Rembrandt, um rosto de um judeu que se assemelhava ao de Cristo e que estava há três séculos com a família. Terão acenado com o quadro às autoridades de imigração quando num momento em que a corrupção alastrava e depois disso mais nada se soube até que o quadro voltou a aparecer, num leilão, já no início do século XXI. Esteve em Cuba, mas sai de lá. Nesse lapso de tempo falta saber tudo sobre o seu percurso onde parece ter havido um homicídio.

Elías, o filho de Daniel, nascido em Miami, vem por isso à ilha onde o pai dizia ter vivido os seus dias mais felizes. Estamos no presente deste romance: Cuba em 2007 e 2008. E Mario Conde surge a unir as pontas, do país e das personagens que por ele passam num processo de avaliação e busca de identidade. “Com cinquenta e quatro anos feitos, Conde sabia que era um paradigma daquela que, havia anos, ele e os amigos definiram como a geração escondida, os seres cada vez mais envelhecidos e derrotados que, sem conseguirem sair da sua toca, tinham evoluído (involuído, na realidade), transformando-se na geração mais desencantada e fodida do novo país que se ia configurando. Sem forças nem idade para se reciclarem como negociantes de arte ou gerentes de empresas estrangeiras ou, pelo menos, como canalizadores ou doceiros, só lhes restava resistir como sobreviventes.”

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Com Hereges, Padura continua no território do romance histórico, mas com um enredo policial. Ernesto Mastrascusa/ CORBIS

A causa da geração
É a geração de Padura. Ele e Conde têm a mesma idade. Fazem 60 anos em 2015. Os dois olham o olham o mundo com ironia, mas em Conde há uma melancolia que vai bem com os habanos e com a perda do sonho, “tinha levado sumiço o seu sonho de escrever um romance onde contasse uma história, obviamente despojada e como vente, como as que escreveu aquele filo da puta do Salinger”, lê-se no arranque, retrato breve do estado em que vamos encontrar o detective que não aparecia desde Neblina do Passado (2006), quando estava a começar a comprar e vender livros antigos e ele achava que ia escrever um livro. “Conde não chega a ser cínico. É irónico e muito desencantado e isso produz uma grande tristeza face ao que vai vendo na sociedade. Mas tem um elemento que neste romance está sublinhado: a sua capacidade de entender. Como os velhos sábios, ele parte de um olhar crítico face a um grupo de jovens mas vai-se solidarizando com eles até ao ponto de entender porque actuam e sentem de uma maneira que não é a dele. É um elemento muito importante no romance: a mudança de pensamento, o modo como se fazem contágios. É uma condição para a liberdade individual: a capacidade de ser na diferença e apesar da diferença. Ser-se o que se é na sociedade, seja no século XVI ou agora. Isso implica solidão, mas é essencial.”

É este o quadro para falar da heresia tentado despir a palavra do preconceito e herege, neste contexto, é o que nega um dogma, que “diverge ou se afasta da linha oficial de opinião seguida por uma instituição, por uma organização, por uma academia…” diz o Diccionario de la Real Academia de la Lengua Española, que é citado quase como epígrafe e que acrescenta, em sublinhado aqui, o que se entende por “estar herege” em Cuba: “estar muito difícil, especialmente no aspeto político e económico”. Ou, acrescentaria ao ler-se o romance, numa solidão que pode ser extrema e se sente ao ler, por exemplo, a lápide do tio de Daniel num cemitério asquenaz deixado ao abandono em Havana. “Joseph Kaminsky. Acreditou no Sagrado. Violou a Lei. Morreu sem remorsos.”

“É o acto de pensar distinto da ortoxia estabelecida”, esclarece Leonardo Padura antes de justificar o título. Hereges porque há “várias as personagens que se afastam da ortodoxia” e porque quer descontaminar o termo de “uma carga negativa dada pelo pensamento católico que sempre considerou o herege alguém que cometia um grande pecado que tinha que ver com os dogmas da Igreja Católica”. Acontece com a Bíblia e com outros livros e outras religiões. O Talmude o Corão. “Eu gosto da palavra, do seu significado positivo. Muitas das conquistas da Humanidade deveram-se a atitudes hereges. Dizia-se que o mundo era plano e um herege que se chamava Cristóvão Colombo veio provar que era redondo. É um pouco dessa maneira que assumo a palavra e a converto a título e trato de lhe dar o seu verdadeiro significado.”

Com a sua história de 4 mil anos de perseguições e fugas, de vida em guetos, do livre arbítrio, do homem enquanto dono da decisão final entre o bem e o mal, os judeus dava-me um universo de possibilidades para falar “do homem livre”, mesmo sabendo que tocava em questões delicadas. “Estamos a viver 70 anos depois da guerra e há um papel ambíguo e polémico dos judeus na História, a decisão de onde nos colocarmos perante a História. Um judeu não é o mesmo que o judaísmo, e o judaísmo não é o mesmo que o sionismo. É preciso fazer muitas distinções para poder entender desde o indivíduo até aos comportamentos políticos de uma determinada comunidade. Passa-se o mesmo com os cubanos. Entendê-los desde a sua individualidade atá à sua colectividade e creio que aí há um paralelo possível no romance. Tratei de não entrar na parte política da questão judaica a não ser quando isso era inevitável. Quis vê-la, sobretudo, nesse conflito que eles representam tão bem, a prática do livre arbítrio, ou a possibilidade que o homem tem de escolher e de exercitar a sua liberdade individual é um tema que já aparece na Bíblia e é uma questão filosófica que nos acompanha há quatro mil anos na cultura ocidental. Não sei se será da mesma forma na cultura chinesa, hindu ou japonesa, mas sei que na cultura judaico-cristã é um conflito que nos tem perseguido e nos continua a perseguir.”

Diz Elías a Conde: “A minha vantagem é ser um judeu da periferia, em todos os sentidos”, alguém que pertence e não pertence que sabe a Lei mas não a pratica, o que permite a Padura ir por uma perspectiva crítica, de distância. Ele é o herdeiro da perda de inocência de Daniel, o judeu que deixou de acreditar num Deus cruel que pedia todos os sacrifícios ao seu povo, incluindo o de os fazer recuar na decisão de se atirarem ao mar de Havana naquele dia 2 de Junho de 1939. Numa carta ao filho, Daniel escrevia que “o aspecto mais lamentável de toda a historia judaica, e com o qual nunca estaria de acordo, estava relacionado com o que ele considerava um profundo sentido de obediência, que tantas vezes evoluíra para a submissão como estratégia de sobrevivência. Falava, evidentemente, da sua sempre polémica relação com o Deus de Abrãao, mas sobretudo, daqueles episódios decorridos durante o Holocausto, em que tantos judeus assumiram o seu destino como inapelável.”

Daniel deixou de ser judeu e mais tarde voltou a fazer os votos porque queria sentir-se pertencer a algo. Deixar a sua solidão. O tio Joseph foi sempre convicto da sua crença até ao dia em que deixou. Deixou? A solidão da lápide dirá isso ou outra coisa? Não é fácil contar a trama deste livro sem a comprometer. Há um quadro de Rembrandt em Cuba e a suspeita de um homicídio e uma geração de hereges sem causa um pouco à semelhança da que James Dean protagonizou no filme de 1955, Fúria de Viver.

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