A Sociedade das Nações para além do "fracasso"

É preciso reavaliar a história – e antes de mais a originalidade – da Sociedade das Nações e deixar de a reduzir ao seu insucesso final, reclama Susan Pedersen em The Guardians: The League of Nations and the Crisis of Empire. A historiadora canadiana vem esta sexta-feira a Lisboa apresentar uma obra fundamental.

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A discussão da questão da Palestina na Comissão dos Mandatos, em 1937, um dos trabalhos da Sociedade das Nações CORTESIA ARQUIVOS DAS NAÇÕES UNIDAS EM GENEBRA

Eternamente incompreendida e reduzida à história do seu fracasso final, a vida da Sociedade das Nações (SDN) é profundamente reavaliada e revalorizada no livro que a historiadora canadiana Susan Pedersen, docente na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, publica já este mês de Junho pela Oxford University Press e que esta sexta-feira apresenta no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, pelas 18h.

The Guardians: The League of Nations and the Crisis of Empire explora o impacto da SDN na vida dos impérios coloniais, mostrando como a internacionalização dos debates sobre questões imperiais e sobre assuntos coloniais mudou substancialmente a natureza das relações entre Estados-império na ordem internacional do pós-Primeira Guerra Mundial. De facto, o aumento da regulação e do escrutínio internacional do funcionamento dos impérios coloniais teve importantes consequências no modo como a História do século XX se desenrolou, comportando importantes legados, nomeadamente no modo como o modelo do Estado-nação se consagrou no século passado.

A SDN foi criada em 1919, no rescaldo da Grande Guerra, sendo consagrada a sua existência institucional através do Tratado de Versalhes, onde se determinaram os termos que, em grande medida, organizaram a vida internacional nas décadas seguintes. Fundada com o objectivo de estabelecer mecanismos internacionais que ajudassem a evitar um novo conflito global, a SDN resultou dos esforços de diversos actores – merecendo Woodrow Wilson, o presidente norte-americano, papel de destaque , para criar uma organização de carácter global que promovesse a paz e os princípios do internacionalismo e da cooperação internacional. No entanto, as actividades da SDN não estiveram limitadas aos temas da segurança e da paz. A organização desempenhou um papel de inegável importância (mais das vezes através de organizações especializadas) em áreas como as políticas imperiais, do trabalho, dos direitos das mulheres ou da cooperação intelectual. No entanto, a emergência de novos estados autoritários, a crise das democracias, a crise de 1929 e, por fim, a erupção da nova conflagração global em 1939 (que a SDN, por si só, não poderia evitar) ditaram o profundo enfraquecimento da organização, que viria a ser dissolvida em 1946. À SDN sucederia a Organização das Nações Unidas, uma organização com uma arquitectura institucional diferente mas que prosseguiu muitos dos desígnios da SDN, recuperando ideias, métodos, mecanismos e até organizações da sua antecessora. 

Analisando em pormenor os debates e as estratégias políticas no interior da SDN, nomeadamente na sua Comissão Permanente de Mandatos – responsável pelos territórios em África e na Ásia perdidos pela Alemanha e pelo Império Otomano no rescaldo da Grande Guerra –, Pedersen mostra que esta, como outras organizações internacionais, deve ser pensada como um “campo de forças” feito de “alianças, redes e instituições instáveis”, cuja relevância não pode ser resumida àquela (pouca) que lhe é atribuída por "realismos" de vulgata vários. Por um lado, revelando-a como uma arena de confluência de uma "consciência" e de motivações internacionalistas, em si vincadamente plurais; por outro, demonstrando a existência de um espírito de pertença e lealdade a esta organização (e aos seus propósitos e ideais renovadores) que coexistia com outros tipos de lealdade (desde logo nacionais e imperiais).

The Guardians é uma obra fundamental que abala seriamente as visões ainda predominantes, sobretudo as que reduzem a história da SDN – para todos os efeitos, reduzem "a" História – à identificação de “sucessos” e “fracassos”. Este raciocínio é aliás frequentemente mobilizado, erroneamente, para pensar as organizações internacionais contemporâneas. De acordo com estas visões, sempre guiadas por uma falácia retrospectiva (pensa-se a História em função do que se pensa ser o presente), a história da SDN reduz-se ao seu insucesso final em matéria de segurança. Deliberadamente ou por simples ignorância, negligenciam as múltiplas histórias e projectos (os que vingaram mas também os que não vingaram) que marcaram a vida da organização: pense-se, por exemplo, no importante trabalho de organismos da SDN em torno de problemas como a escravatura e o trabalho forçado, o tráfico de crianças e de mulheres, a prostituição, os refugiados, a protecção de minorias, a cooperação intelectual ou as migrações globais (forçadas ou não).

O seu trabalho mais recente demonstra que o papel da SDN tem sido pouco estudado e mal compreendido. Em The Guardians, o papel da SDN enquanto “agente de transformação geopolítica” é reconstituído. Após décadas de predomínio de narrativas sobre o “fracasso” da SDN, especialmente no que diz respeito à prevenção de conflitos militares, esta sua contribuição constitui uma necessária correcção historiográfica e analítica. Pode explicar porquê, em síntese?
A SDN não esteve apenas preocupada com questões de segurança. Foi ainda responsabilizada pela gestão da ordem imperial definida em Versalhes, sobretudo no que diz respeito à administração “sob tutela” dos territórios alemães e otomanos conquistados pelos aliados durante a Primeira Guerra Mundial. Na minha opinião, este “sistema de mandatos” foi particularmente importante, não porque estes territórios do Médio Oriente, de África e do Pacífico fossem administrados de modo muito diferente daquele que vigorava nas colónias, mas sim porque o envolvimento da SDN abriu espaço para a discussão, a contestação e o desafio internacional a essa ordem imperial. Os aliados pensavam que o “sistema de mandatos” iria convencer um público crescentemente céptico que a sua administração era benevolente e legítima. Em vez disso, eles foram confrontados com críticas de peritos, petições e revoltas de movimentos locais e de organizações humanitárias, e também com projectos revisionistas avançados por alemães e italianos, que reclamavam o retorno ou mesmo a expansão dos seus impérios. Toda esta agitação em Genebra fez com que os territórios mandatados (especialmente a Palestina, a Síria, o Iraque, o Sudoeste Africano [actual Namíbia], a Samoa Ocidental e o Ruanda) se tornassem alguns dos mais importantes “pontos críticos” do período entre-guerras, tornou a administração de impérios mais difícil e, por fim, tornou possível o que eu apelido de “mandatory statehood” [a ideia de que apenas a solução estatal é reconhecida internacionalmente como legítima).
 
O sistema de mandatos e todos os seus mecanismos de supervisão transformaram os idiomas e os repertórios da “tutela sagrada" [sacred trust], nomeadamente porque facilitaram “reivindicações vindas de baixo” (apesar dos constrangimentos de produção, circulação e recepção). Pode explicar-nos como se desenrolaram estes processos e qual o seu impacto nas colónias e no próprio debate internacional sobre o colonialismo?
Esse é um dos aspectos mais interessantes do sistema de mandatos. E foi inesperado. Os negociadores da paz em Paris não inseriram o processo peticionário no sistema. Mas a contestação do sistema foi tal, nomeadamente no Médio Oriente, com apelos e protestos contra a administração britânica e francesa inundando o Secretariado em Genebra, que um conjunto de burocratas e estadistas que apoiavam a SDN insistiu que o princípio da petição devia ser um direito se os naturais se sentissem explorados ou mal governados. Por exemplo, o bombardeamento, em 1922, por parte da África do Sul, de tribos que se revoltaram contra o modo como eram governadas no Sudoeste Africano chocou a Assembleia da SDN. Como consequência, esta última forçou os poderes mandatados a aceitar o processo peticionário. Certas comunidades, especialmente no Médio Oriente e em Samoa, apresentaram imensas petições. Embora estas raramente tenham tido sucesso ou suscitado rectificações, não deixaram de contribuir para a formação de um “argumento ético” contra o império. As petições publicitaram as queixas dessas populações e embaraçaram significativamente as potências imperiais.

Uma outra questão interessante, e que tem uma ressonância contemporânea, reside no papel desempenhado pelas organizações internacionais. A sua fina e complexa leitura das dinâmicas e consequências associadas à SDN contrasta com as visões simplistas e redutoras – muitas vezes tributárias de um realismo de vulgata – que ainda predominam. Na sua opinião, quais são as principais vantagens da introdução das organizações internacionais no centro da análise histórica?
Eu acho que uma das principais razões pelas quais os académicos subestimaram e compreenderam deficientemente as organizações internacionais reside em tenderem em demasia a concebê-las como “actores” – a SDN deve “fazer” isto e aquilo – em vez de as tomar como “arenas” ou, como eu as descrevo, como “campos de forças”. A SDN foi importante porque forçou uma série de actores – Estados mas também lobbies e movimentos – a exprimir reivindicações e a agir numa arena pública e sob um escrutínio público. Este processo mudou as coisas: por vezes criou novas normas e por vezes chegou a mudar o que os estadistas queriam fazer. Isto é um tipo de poder: só não é directo, e é frequentemente mal compreendido.

Argumenta que a maioria dos Estados e dos Estados-império esperavam que a SDN fosse, desde a sua emergência, um fórum de cooperação interestatal e interimperial. Mas, como demonstra no seu livro, a SDN não deixou de ter uma certa autonomia e desenvolveu novas alianças e um compromisso público com o internacionalismo, tornando o internacional mais do que a soma das vontades nacionais. Como é que este compromisso com o internacionalismo condicionou o funcionamento da SDN?
A SDN não foi apenas um fórum de negociação inter-estados, como vocês notam. Foi também uma causa. As pessoas tentaram arranjar empregos em Genebra porque acreditavam na SDN, achavam de facto que esta era a melhor esperança para a paz e o progresso. Eu queria iluminar esse mundo, dar-lhe vida, porque era vívido, interessante e cheio de grandes personagens. O facto de o Secretariado recrutar os seus oficiais de todos os Estados membros e posteriormente os colocar numa cidade plácida e burguesa na Suíça facilitou a criação de um grande espírito de corpo. Existiam amizades e disputas, casos e casamentos, "piadas privadas", excursões e projectos comuns. Sabiam que o zelador do Palácio das Nações tinha um cão-de-guarda que tinha a alcunha de Völkerhund? [significa “Cão das Nações” ou “Cão dos Povos”, mas permite a confusão com Völkerbund, "Sociedade das Nações" em alemão)] Ou que dois précis-writers [redactores de sínteses profissionalizados] também escreviam sobre mistérios relativos a assassinatos que decorriam no Palácio? Estas questões parecem triviais, mas também são sinais de comunidade e solidariedade. Isto fez com que, em condições difíceis, as pessoas que trabalhavam no Secretariado se esforçassem bastante para encontrar formas de comunicação entre Estados encarniçados e beligerantes. 

A SDN também funcionou com um espaço no qual reivindicações de um conjunto variadíssimo de grupos podiam ser apresentadas e publicitadas. Apesar de ser uma organização essencialmente ocupada por “homens brancos”, como é que a SDN promoveu a participação de grupos particulares, desde movimentos de mulheres até redes anticoloniais e pan-regionais?
A SDN foi inovadora de diversas maneiras. Primeiro, o acesso a todos os lugares no Secretariado era igual, de um ponto de vista formal, para mulheres e homens. Na prática as coisas não eram tão cor-de-rosa. A maioria das posições foi para homens, e os lugares mais importantes foram ocupados por homens britânicos e franceses. Mas, por exemplo, a chefia da Secção Social era ocupada por uma mulher, Rachel Crowdy. Ela foi responsável pela integração de muitas mulheres como assessoras e peritas nos seus comités. Isto significou que as organizações filantrópicas lideradas por mulheres podiam desempenhar um papel efectivo em Genebra. Já em relação aos activistas anticoloniais, estes tinham mais dificuldade em integrar a organização, apesar de ser possível identificar alguns – poucos  oficiais e representantes não-brancos. Por outro lado, o processo das petições encorajou algumas redes – como o Congresso Sírio-Palestino – a estabelecer uma representação oficial em Genebra, esforçando-se bastante para influenciar a SDN. Isto significa que os movimentos anticoloniais compreenderam que precisavam de internacionalizar a sua causa. Fazê-lo seria mais eficaz do que apenas combater o seu suserano imperial localmente. Hoje em dia estamos habituados a isso: as Nações Unidas são arena onde a reivindicação acontece.

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Susan Pedersen quis também reconstituir a intensa vida da comunidade que a organização criou numa “plácida e burguesa” cidade suíça VERONICA DOUGLIN

O sistema dos mandatos teve um impacto evidente no posterior sistema de tutela da Organização das Nações Unidas, mas isso não impede que a maior parte das pessoas pense nos mandatos da SDN como uma relíquia histórica. O estudo da história dos mandatos continua a ser relevante para se compreender como, hoje, as organizações internacionais e os países mais desenvolvidos abordam temas como a intervenção humanitária ou a supervisão internacional de estados “falhados” ou “párias”?
Uma das tendências que se pode identificar como emergindo dentro do sistema dos mandatos – se se prestar a devida atenção – é o afastamento progressivo da ideia de controlo directo dos territórios pelos poderes imperiais em benefício de uma visão e de uma gestão das relações internacionais mais difusa, sustentada na hegemonia económica, em alianças e em relações clientelares. Na verdade, eu creio que a história do sistema dos mandatos nos diz muito sobre como chegámos a este momento, em que se espera que todos os territórios sejam Estados mas em que, por outro lado, o significado que atribuímos à palavra “Estado” mudou. Por exemplo, o império britânico insistiu que a SDN acolhesse o Iraque como um “Estado” em 1932, mas os campos petrolíferos e os campos de aviação continuaram na mão dos britânicos. Tal como hoje alguns Estados são profundamente constrangidos pelas relações de poder globais e pela economia global: creio que podemos encontrar algumas das origens destes problemas neste período.

O internacionalismo, no presente, perdeu algum do seu poder de atracção. São muitos os que tendem a equacionar internacionalismo com programas de ajustamento estrutural ou com burocratas internacionais que não respondem perante as populações locais ou nacionais. Crê que o reconhecimento da diversidade de internacionalismos e das suas genealogias pode favorecer um novo debate em torno do internacionalismo e das organizações internacionais?
As “organizações internacionais” não são uma panaceia: ninguém crê que umas quaisquer mega-instituições vão substituir os espaços políticos nacionais e locais. A questão é que o nosso mundo é hoje irremediavelmente internacional e global: já não temos grande escolha, na verdade, a esse respeito. Até os movimentos anti-globalização são “globais”. Eu tentaria simplesmente ter presente, tal como sugerem, que não existe apenas um “internacionalismo”. Hoje em dia, a tecnologia torna praticamente impossível as tentativas de fazer com que as pessoas fiquem isoladas e sem estabelecerem contactos. O que é, em si, uma coisa boa. Pode funcionar como um freio que condiciona os desígnios desses “burocratas não-eleitos”, da mesma forma que as petições e as pressões provenientes “de baixo” destabilizaram os esforços de legitimação dos impérios entre as duas guerras.

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A equipa da Secção dos Mandatos, responsável pela administração dos territórios na Ásia e na África que foram perdidos pela Alemanha e pelo Império Otomano na sequência da Primeira Guerra Mundial CORTESIA ARQUIVOS DAS NAÇÕES UNIDAS EM GENEBRA

Têm sido propostos, por políticos ou investigadores, exercícios de analogia histórica entre o momento actual e os anos entre-guerras. De forma pouco surpreendente, a história da Sociedade das Nações tem sido reduzida aos seus “fracassos”. O que pensa sobre este tipo de exercício analítico? De que forma um melhor conhecimento da história da SDN pode ajudar-nos a afastar algumas destas abordagens extremamente deterministas?
Eu penso que existem algumas ressonâncias do período entre-guerras no mundo de hoje. Não há uma ordem bipolar evidente, mais uma vez. O equilíbrio de poder está a mudar. Não existe um poder hegemónico global único – ou, talvez, o poder hegemónico (então, o império britânico; hoje os Estados Unidos da América) esteja cansado ou sobrecarregado. Mas, e apesar disso, não creio que existam “lições” evidentes que devam ser retiradas do período entre-guerras, e penso genuinamente que tentar pensar em termos de “sucessos” e “fracassos” é apenas estúpido. Os anos entre-guerras foram incrivelmente instáveis e marcados por inúmeros problemas: um equilíbrio de poder em mudança, alguns impérios sob pressão e outros a tentarem desesperadamente expandir-se, a ascensão de estados revisionistas, e, depois, junte-se a isto uma séria crise económica. Aquilo que era preciso fazer não era de todo claro e, retrospectivamente, fico impressionada pela forma como a SDN enfrentou tão seriamente alguns dos graves problemas de então, mais do que pelo seu “fracasso”. Max Weber disse que a política era “o perfurar decidido e lento de tábuas duras”. É uma boa descrição do tipo de desafio que a SDN enfrentou. A SDN não perdurou mas muitas das instituições e práticas que estabeleceu continuam connosco. Por exemplo, a Organização de Saúde da SDN tornou-se a Organização Mundial de Saúde, a Secção Económica e Financeira deu lugar ao Conselho Económico e Social da ONU (ECOSOC), o Comité de Cooperação Intelectual tornou-se a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Olhem para o que aconteceu a outras propostas, daquele período, de estabelecimento de uma “ordem global”: o Comintern, os grandes impérios, o Vaticano. A SDN não parece ter sido um fracasso tão óbvio...

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