A sinfonia mil vezes tocada do vingador

Mads Mikkelsen, actor de sensibilidade frondosa, arrisca ser aqui comparado com os mais monolíticos Mel Gibson e Russell Crowe. É o presente que lhe dá A Vingança de Michael Kohlhaas.

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Heinrich von Kleist – poeta, romancista (1777-1811) – e cinema “dá” Eric Rohmer: o frémito que sussurra em cada plano de A Marquesa d’O (1976), em que o melodrama operático (como no Senso, de Visconti) respira no interior da teatralidade mais descarnada (como no Amor de Perdição, de Oliveira). Esse filme era e ainda é uma felicidade para o espectador.

Esta semana, chega às salas Amor Louco, de Jessica Hausner, sobre os últimos dias de Kleist, quando, aos 34 anos, convenceu Henriette Vogel a deixar-se matar por ele e com ele, à beira do lago. O filme de Hausner “pensa” claramente, e desassombradamente, no de Rohmer. O que anula qualquer horizonte de comparação – seria luta desigual – e integra a intimidação em favor da inquietação das personagens, marionetas de uma dança maior. O que é, de resto, a razão do encontro entre a realizadora de Lourdes (2009), já um filme de personagens amarradas a uma coreografia, e Kleist. Que é, enfim, o autor de Michael Kohlhaas – O rebelde, que Arnaud des Pallières adapta (outra estreia, A Vingança de Michael Kohlhaas).

Não há aqui sinais de estremecimento, nem ambição em relação à história de um comerciante de cavalos do século XVI, homem justo que o desejo de vingança transforma em justiceiro, a não ser congelá-la com a sinfonia mil vezes tocada do homem normal que se transforma em vingador – veja-se como Volker Schlondorff, em Michael Kohlhaas-Der Rebell (1969), filme que nem sequer amava excessivamente, procurava sacudir o perigo academizante da “adaptação” tornando o filme permeável a um presente, o das manifestações juvenis que naqueles anos da década de 60 do século XX se mostravam nas ruas (foi isso que Schlondorff, na mesma altura, fez ao Baal de Brecht).

Não há remissão, portanto, para A Vingança de Michael Kohlhaas, que dá um presente envenenado a Mads Mikkelsen, actor de sensibilidade frondosa (bastaria A Caça, de Vinterberg...) que aqui arrisca ser comparado com os mais monolíticos Mel Gibson e Russell Crowe. 

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