A selva amazónica entra na Gulbenkian pela ópera de Victor Gama

Durante quatro anos o compositor Victor Gama embrenhou-se na selva e na cultura amazónica, tomando consciência dos problemas ambientais que ali se vivem. Esta sexta-feira, em estreia mundial, apresenta a ópera multimédia 3 mil RIOS, resultante dessa experiência.

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Victor Gama percorreu parte da Amazónia
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É a estreia mundial. Nos últimos quatro anos o compositor, designer de instrumentos e músico luso-angolano Victor Gama percorreu parte da Amazónia, escutando as vozes dos que habitam a floresta e sofrem os impactos da sua destruição ambiental, traduzindo agora essa experiência em música, vídeo e som na ópera multimédia 3 mil RIOS: Vozes na Floresta que estreia esta sexta-feira, pelas 21h, no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Uma obra que resulta de uma encomenda da própria Fundação Gulbenkian e do Teatro Cólon de Bogotá na Colômbia.

Em Portugal ele continua a ser em parte um segredo bem guardado. Mas quem se interessa pela sua arte sabe que o mundo o tem recebido com grande entusiasmo nos últimos anos, requisitando a sua música, os seus ensinamentos e as suas exposições, ao mesmo tempo que se deslumbra com os instrumentos que ele cria – pequenas maravilhas escultóricas e sonoras. Em tudo o que faz parece existir uma tentativa de fundir o mundo físico e o virtual de novas e profundas maneiras, congregando histórias, alusões, acontecimentos sociais e culturais com o mundo natural.

Esta sexta-feira, o próprio irá estar em palco, tocando vários dos seus instrumentos, acompanhado por sopranos, cantores tradicionais, percussionistas e a Orquestra Gulbenkian dirigida por Rui Pinheiro. Na origem da peça esteve 3 Mil RIOS: prelúdio, uma encomenda da Prince Claus Fund da Holanda, que a apresentou no Palácio Real de Amesterdão em 2013, dois anos depois de iniciada a pesquisa no terreno. “Era uma peça de cerca de vinte minutos”, lembra Victor Gama, que assinala que foi aí que a Gulbenkian se envolveu no projecto, embora a sua relação com a fundação viesse de trás, com Vela 6911 de 2012, numa encomenda da Orquestra Sinfónica de Chicago e MusicNOW, com apoio da Gulbenkian.

“Existiram vários pontos de partida para este novo trabalho, a começar pelo facto de ter uma relação com a Colômbia de mais de 20 anos e de ali já ter vivido durante períodos da minha vida”, recorda. Victor Gama nasceu em Angola e tem vindo a viver entre Luanda, Bruxelas, Bogotá e Lisboa. “A Colômbia é um país fascinante pelos contrastes. Socialmente é um país complicado, mas, em termos de natureza, das pessoas e da sua cultura é riquíssimo, especialmente para alguém como eu, que sempre procurou a viagem, por amizade, paixão e procura”, afirma. Recorda que os cerimoniais, a cultura amazónica e a maneira de estar na vida das diversas comunidades, incluindo os aspectos sociais, políticos e culturais foram uma das janelas que se abriram para o presente trabalho. A outra foi “a situação ambiental na extensa zona das florestas colombianas e não só". "Há claramente uma nova onda impactante de industrialização da selva, da qual nós aqui não temos grande compreensão, apesar de alguns ecos.”

Realidade desconhecida     

No espectáculo, a música, o vídeo e o som transportam-nos para o interior mais profundo da floresta, fazendo-nos sentir o seu envolvimento, mas também a urgência de a salvar da destruição. Ao longo de quatro anos, em parceria com organizações e comunidades locais nas florestas tropicais do Choco, montanhas dos Andes e Amazónia colombiana e brasileira, Victor Gama foi auscultando as vozes daqueles que habitam a floresta e sofrem os impactos directos causados pela acelerada destruição ambiental que ocorre naqueles ecossistemas em plena onda de industrialização.

Há alguns anos a luta contra a progressiva destruição da Amazónia tornou-se numa bandeira ecológica. Parecia que se viviam tempos de maior consciência ambiental. Mas na prática pouco foi feito. “Durante algum tempo a Amazónia transformou-se numa metáfora dos problemas ambientais do mundo, mas continua a ser uma realidade desconhecida, apesar de notícias que vão surgindo aqui e ali. A grande verdade é que não temos noção do nível, da profundidade e da quantidade de projectos infra-estruturantes, de hidroeléctricas a outros, que continuam a ser construídos na Amazónia ou acabarão por sê-lo nos próximos 20 anos.”

A situação é de tal forma grave, afirma, que as organizações ambientais a operar no terreno têm vindo a mudar o seu discurso. “As estratégias têm vindo a transformar-se, porque a maior parte das organizações já percebeu que a destruição é imparável. Não há forma de voltar atrás. É preciso um outro tipo de abordagem do problema. Uma das organizações parceiras neste projecto, com que viajei nas suas missões junto das comunidades e dos líderes locais, trabalham com eles no sentido da preservação do conhecimento. Do ponto de vista social é quase impossível que uma comunidade índia da Amazónia que viva em isolamento voluntário não se desmorone socialmente ao integrar-se.”

Outra actividade levada a cabo por essas organizações remete para os processos de legalização territorial ou, noutra perspectiva, para “a blindagem legal de certos territórios onde vivem comunidades em isolamento voluntário. São pessoas que não querem contacto e demonstram-no claramente. E o trabalho dessas organizações é tão local e comunitário, quanto institucional, junto das cúpulas do Estado”.

Durante essas incursões Victor Gama e os seus colaboradores faziam-se acompanhar de câmaras, microfones e gravadores, registando sons, vivências e experiências. “A ideia desde o início era contar uma história com o maior número possível de elementos e nesse sentido fomos recolhendo sons – há ruídos na floresta, de pássaros a insectos, que são totalmente surreais – e encontrámo-nos com pessoas, entrevistámo-las ou limitámo-nos a estar com elas e tudo isso irá ter tradução na peça.”

Por vezes nessa relação próxima com a natureza existe o perigo da idealização, como se ela representasse a possibilidade de harmonia, ou uma espécie de regresso mítico a um lugar rasurado de conflitualidade.

“Essa romantização acontece inevitavelmente do lado de quem não a vive”, observa, “sendo ao mesmo tempo sintoma da separação com que vivemos essa relação. No fim de contas não conhecemos a natureza. Tal como não compreendemos a relação que outros seres humanos estabelecem com a floresta vivendo nela há milhares de anos de forma sustentável. Aquilo que eles conseguem vislumbrar é diferente do que nós vemos. Se fizermos um esforço em compreender a sua cosmovisão, percebemos que ela vai muito para além do que aquilo que é visível para nós e é aí que está a janela para se perceber essa cultura amazónica.”

O texto e a partitura da ópera foram inspirados no livro Cariba Malo do antropólogo colombiano Roberto Franco e nos cantos rituais das cerimónias de ambiwasca, que são interpretados pelas soprano Yetzabel Arias Fernandes, Betty Garces e Té Macedo, contando com as participações de Waira Nina Jacanamijoy e Jaime Lopes Kiriyateke, cantores das comunidades Inga e Murui-Muina da Amazónia colombiana.

Pertencem a comunidades que habitam nas margens do rio Caquetá, esclarece Victor Gama. “Estão numa zona vizinha de áreas protegidas onde vivem comunidades em isolamento voluntário. São pescadores, entre outras actividades que praticam na sua aldeia. Às tantas, durante umas filmagens, um deles começou a cantar e fê-lo maravilhosamente bem e foi aí que pensámos que poderia fazer sentido integrá-los na peça.”

Trazer a floresta para a sala     

A narrativa é construída através de histórias dos habitantes das florestas, das suas lutas pela sobrevivência em territórios disputados por forças e poderes adversos, mas interligadas com a natureza e os rios. A partitura está dividida em três actos e a acção decorre ao longo de alguns dos grandes rios amazónicos como o Putumayo, o Caquetá, o Tocantins ou o Napi. Para traduzir artisticamente o que foi experienciando no trabalho de campo,Victor Gama estruturou uma composição escrita para músicos de orquestra, instrumentos que inventou, canto e espacialização multicanal, acabando a elaboração técnica da ópera por ter sido pensada durante uma residência de seis meses na Universidade de Stanford na Califórnia.

“Só na fase final de todo o processo a concepção musical foi activada”, reflecte Victor Gama. “O tempo que estive no departamento de música de Stanford serviu para isso e essencialmente para pensar questões mais tecnológicas, relacionadas com a utilização e a espacialização sonora, porque uma das ideias era tentar trazer a floresta para dentro da sala, já que é difícil levar toda a gente para a floresta”, diz a rir-se. Acrescenta que o grande desafio é sempre como traduzir em música, canto e imagens impressões tão fortes como aquelas que viveu. “Acompanhar os antropólogos ou os advogados nas suas missões, caminhar dias pelas montanhas – o desconforto de tudo aquilo –, para no final nos encontrarmos com as comunidades, deixa realmente uma marca. Aprende-se muito. Por vezes chegamos um pouco receosos. Não queremos perturbar. Mas depois apercebemo-nos que não é possível saber de imediato todas as regras ou os procedimentos e são eles que nos convidam a esse conhecimento.”

Desde o início dos anos 1990, altura em que criou o projecto Pangeia Instrumentos, que Victor Gama tem vindo a explorar diferentes sonoridades e novos processos de criação através da construção de instrumentos, dispositivos sonoros e instalações. O seu percurso é profundamente singular, tendo vindo a atrair encomendas de instituições de prestígio como a Chicago Symphony Orchestra, a Royal Opera House de Londres ou o Tenement Museum de Nova Iorque, ao mesmo tempo que colabora com o Kronos Quartet, compõe para dança e filmes, actua um pouco por todo o mundo. Lançou várias obras, entre elas um álbum editado pelo conhecido músico das electrónicas Aphex Twin ou Naloga de 2012, compilação de trabalhos expostos na Royal Opera House.

Mas este é capaz de ser o seu projecto mais ambicioso. “Se temos de fazer um grande esforço para montar uma peça, procurar as pessoas certas, conseguir financiamentos e parceiros, então que façamos algo que possa ser útil. A realidade que esta peça aborda interessa a muita gente. Não é apenas uma questão ambiental, mas sim política, social e civilizacional. Reflectir esta realidade no presente, mostrando que é algo à qual estamos ligados, porque o nosso estilo de vida tem impacto na Amazónia e nas florestas do mundo, parece-me sem dúvida importante.”

Depois de Lisboa seguir-se-ão apresentações no Teatro Cólon de Bogotá e para o ano está prevista uma iniciativa especial. “Queremos meter os músicos num barco e descer o rio, talvez até ao Amazonas e ir quem sabe até Manaus, para que as comunidades tenham acesso ao que produzimos. A eles faz sentido que o resultado seja partilhado. E a mim também.”

 

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