À segunda, As Mil e uma Noites rocks!

Com o segundo volume, O Desolado, o filme de Miguel Gomes entranhou-se em Cannes 2015. Navegamos nesse encantamento.

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O Desolado
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A actriz Luísa Cruz em O Desolado

Cachecol do Benfica ao alto, por causa de um jogo de futebol na véspera que lhe valeu o título, um merci beaucoup a uma audiência que voltou a encher o Théâtre Croisette, a que regressou para ouvir a continuação das histórias de As Mil e uma Noites de Portugal, e depois “ok, let’s rock’n’roll”.

Miguel Gomes voltou ao palco para apresentar o segundo volume do seu filme de cerca de seis horas. O Inquieto ficou para trás. Agora trata-se de O Desolado. O Encantado mostra-se na quarta-feira. Assim o realizador vai dando origem a um espectáculo alternativo à selecção oficial de Cannes (aquela coisa do cachecol ajudou a fixar iconografia na segunda-feira) que se desenrola afastado do Palácio dos Festivais, na Quinzena dos Realizadores, onde os três volumes de um filme estão a ser descobertos, de forma autónoma, cada um espaçado por um dia de intervalo.

O realizador avisara, por altura do primeiro volume deste fresco que se foi produzindo em directo, entre Agosto de 2013 e Julho de 2014, de acordo com os acontecimentos e os fait divers do Portugal da troika, do desemprego e de um governo “aparentemente desprovido de sentido de justiça social” (informação na legenda para que ninguém seja apanhado desprevenido), que o filme ia ser sujeito a metamorfoses várias. Parece ser consensual que à segunda As Mil e uma Noites entranhou-se em Cannes 2015. O Inquieto parecia inquietar-se excessivamente com a sua própria desmesura de projecto. Precisava talvez de fazer as apresentações, de jogar o jogo de sedução, e fazia a sua dança do ventre. O Desolado passa à frente disso, navega no seu próprio encantamento, coloca a coisa um passo à frente – ouvimos gente convencida.

Três histórias, a primeira a de Simão Sem Tripas, um “desperado” como os do western, homem que dispensa o mundo que o quer dispensar, autor de crimes condenáveis. Torna-se o (anti)herói das gentes que aplaudem, porque é assim que se consolam, o jogo de ludibriar as autoridades. O episódio espraia-se de forma terminal - como os cowboys dos últimos dias -, sem pressas para chegar ao fim.

Depois é a história de uma juíza (Luísa Cruz). Agora As Mil e uma Noites transforma-se em catarse popular, com caretos e tudo. É o Acto de um Outono português, cadeia de culpa, miséria e corrupção que culpa todos, banqueiros também. Que nos culpa a todos, o espelho está ali. Vai-se revelando como pequenas explosões de comicidade e amargura, é triste isto e toda a gente se ri porque o desespero e a imoralidade permitem jogos de palavras universais.

Apesar da mecânica de surpresa que gera surpresa, nos diálogos e na cadeia da corrupção, nada nos prepararia para o que vem depois e vive numa torre do subúrbio de Lisboa, em Santo António dos Cavaleiros. Nada nos preparara para essa explosão da narrativa, que se estilhaça em câmara lenta, que se multiplica sem amanhãs.

Vamos passar de história em história, ou de história para apontamento, com Dixie, um cão que passa de dono em dono com enorme vontade de amar e uma ainda maior necessidade de esquecer. O filme, finalmente (se calhar é melhor para já dizer apenas: este volume, O Desolado), consome-se com a consciência desta voracidade. E aqui Miguel Gomes vai de novo ao encontro de um género cinematográfico que lhe deve pertencer - de novo porque já foi materializado na primeira parte de Tabu. E que nos pertence inteiramente: é a tristeza enclausurada nas caixas que servem de apartamentos nos subúrbios, é o volume tolhido do som dos diálogos, é a névoa e o fumo do cigarro que se acumula entre janelas e que se alivia, para o exterior, tristemente. Badamerda, todos nós!

Agora, sim, As Mil e uma Noites rocks.

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