A profissão mais importante dos vivos

A rudeza e a violência são essenciais para a estética e a ética de Sandro William Junqueira em No Céu Não Há Limões

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O título No Céu não Há Limões surgia já em O Caderno do Algoz (Caminho, 2009) — “e depois, o milagre! Que eu saiba no céu não há limões! — numa passagem que antecipa o negrume e o cerrado cepticismo que ambientam o mais recente romance de Sandro William Junqueira.

Este constrói-se de encontro a um cenário de guerra, que dilacera o espaço da acção, cindindo-o em dois: Norte e Sul. A oposição entre essas duas facções não fica a dever-se a causas políticas ou económicas, mas a uma série de catástrofes naturais que assolaram a área a Sul da Terra do Meio, algures antes do tempo da narrativa — “Furacões, pragas, sismos, cheias, secas” (p. 154) —, e criaram uma fronteira que não o é (como o muro que dividia o mundo civilizado e o selvagem em Um Piano para Cavalos Altos, Caminho, 2012). A guerra é de tal modo um facto da vida que é acompanhada à maneira de um desafio desportivo, cujos resultados — número de baixas de parte a parte — são permanentemente comentados pelas personagens, agindo como marcadores temporais ou organizadores discursivos do ritmo. Abandonando a grande tradição do romance psicológico, de que falava, por exemplo, Milan Kundera, a ficção de Sandro William Junqueira parece prescindir da análise em função da síntese. As personagens, mesmo os espaços, e até os tempos (“O tempo das colheitas”), manifestam-se em notações escassas, claramente infirmes. Se já em Um Piano para Cavalos Altos os locais se chamavam Zona Cinzenta, Zona Castanha e Zona Azul; se em O Caderno do Algozexistia, por exemplo, um “jardim de X”; o espaço de No Céu não Há Limões traduz-se nas referências Norte, Sul e Terra do Meio de um território nunca especificado.

O estado de coisas de No Céu Não Há Limões cria personagens bruscas e violentas, coriáceas: resumidas à condição sub-humana de um instinto de ataque e defesa — “a profissão mais importante dos vivos é esta: sobreviver” (p. 68). Perderam mesmo, como uma pele supérflua, o nome, e o que lhes resta é um indício de função, idade, ou traço fisionómico. De uma forma peculiar à mecânica deste livro, são personagens-tipo. Carregam consigo objectos identificadores, produzem gestos que as denunciam: sem necessidade, ou possibilidade, de aprofundamento. O Padre, por exemplo, faz correr por entre os dedos uma moeda fora de circulação, um sinal identificativo do seu desconforto como clérigo sem fé e como homem tentado, apaziguado por aquele tique mecânico. A Adolescente enverga uma série de vestidos com padrões de frutos que vão variando, ao longo do romance, e que se impõem como símbolo da exuberância e sensualismo da personagem — um escape para o cinzentismo dominante. O Ogre transporta ao colo uma variedade de animais (o primeiro dos quais, um coelho), numa espécie de variação da iconologia clássica do vilão das histórias de espionagem.

A narrativa desenvolve um largo conjunto de enredos, que parecem não se inscrever numa hierarquia definitiva na economia do romance. Não se pode dizer que qualquer um deles sobreleve o outro; mas também não será legítimo afirmar que todas as partes do mecanismo concorrem para um mesmo fim. Nem talvez seja esse o propósito deste livro. Há uma rudeza e uma violência — essenciais para a estética e a ética deste romance — que procuram esse desequilíbrio. O plano espiritual — representado pelas instâncias caducas do Padre e do Bispo Auxiliar — tem, nesta ordem narrativa, uma relação tão estreita quanto perniciosa com o temporal — a Adolescente, o Ogre, o Funcionário. Cada uma destas personagens traz o seu microcosmos para o cosmos geral do romance. A harmonização das malhas narrativas, pode dizer-se, é uma das formas que No Céu Não Há Limões tem de ficar aquém. É razoável conceber que o seu projecto não inclua a criação de um todo harmónico; mas talvez se possa afirmar que o desencontro entre as partes acaba por prejudicar a construção do romance — e, sobretudo, o organismo que o romance, apesar de todas as torções, deve aspirar a ser. Possivelmente, aqui, menos por defeito do que por excesso.

No Céu Não Há Limões

 não obedece propriamente a princípios de verosimilhança (a personagem do Acólito está constipada há cinco anos), nem pretende ser a representação de uma realidade identificável no imediato, nem tão-pouco uma variação dela. O seu móbil é de outra natureza. Poderia arriscar-se que o romance é uma alegoria sobre alguns dos fantasmas que assombram a actualidade, projectando-a num tempo hipotético e indefinido. Uma visão distópica que agudiza determinadas referências do presente, tal como fizeram outros autores de ficções dessa linhagem. Por exemplo, a injunção “NÃO PROCURES, CONTEMPLA” (p. 67) representa uma decantação do orwelliano “LIBERDADE É ESCRAVIDÃO / IGNORÂNCIA É FORÇA”. Do mesmo modo que a raridade do chocolate, em 

No Céu não Há Limões

, repercute alguns dos condicionalismos da acção de 

1984

. Até que ponto, então, este território dividido entre um Norte próspero e um Sul a tentar sobreviver de forma miserável não será uma metáfora da própria Europa, convertida em nação? Nunca saberemos, nas páginas deste livro, se sim ou não. Mas alguns dos sinais estão lá. As catástrofes ambientais, a submissão do Sul face ao poderio do Norte, até a moeda que o Padre faz correr por entre os dedos poderia representar, simbolicamente, o escudo — “Ainda te vai ser útil. Um dia, ainda vais utilizá-la, vais ver” (p. 92).

A escrita de Sandro William Junqueira é desesperadamente lacónica e concreta, evidência da busca de um estilo que evita (quase sempre) as abstracções. Como quando, por exemplo, para significar “bloqueio”, elege a designação “travão biológico”. Já em Um Piano para Cavalos Altos uma “borboleta no olho” metaforizava um tremor ocular. Nesse sentido, outro dos aspectos que poderá prejudicar os romances do autor é o desequilíbrio existente entre o investimento expressivo — “manada de risos” (p. 36) — de uma parcela significativa dos núcleos que compõem os seus livros e momentos em que é notório que se descura esse aspecto (de forma deliberada ou não, acaba por ser razoavelmente indiferente) — “A cem metros da casa em causa” (p. 161); “O Padre, de joelhos crentes assentes” (p. 266); “lábios carnudos” (p. 102). Neste último ponto, por exemplo, o uso consagrado contrasta fortemente com a tentativa (notória na generalidade do romance) de criar, de cada vez, um fraseado contrário ao lugar-comum — “cobertor de nuvens” (p. 56) “lona” do escuro (p. 57) É possível que, se a clivagem entre os dois modos não fosse tão funda, as ocorrências de uma fraseologia corrente, que arrisca a banalidade, ou mesmo o anacronismo indesejado — “cabelo com brilhantina” (p. 98) —, se diluíssem no cursivo do romance.

Alegoria de um mundo que parece prever, distopia de um futuro paralelo, ou bem próximo, No Céu não Há Limões é um romance de escrita por vezes arrojada, e mesmo conseguida, mas que parece debater-se num dédalo de tramas e lutar contra uma tipologia narrativa especialmente árdua.  

 

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