À procura de Juan José Millás

Sarcástico, por vezes absolutamente franco, Millás nunca nos deixa indiferentes

Juan José Millás deixa quase sempre o leitor estarrecido. Nos seus livros, e particularmente em "O Mundo", que acaba de ser publicado em Portugal, recebeu o Prémio Planeta 2007 e o Prémio Nacional de Narrativa 2008, entramos na sua cabeça. Literalmente. E damos por nós a rir.

Sarcástico, por vezes absolutamente franco, Millás nunca nos deixa indiferentes. São quase 200 páginas, onde conta como foi marcante para a sua vida os pais abandonarem Valência, onde ele nasceu, para irem viver para Madrid. Esse lugar onde Millás encontrou o "mundo": a rua da sua infância.

Com esta obra, que acabou por intitular "O Mundo", aconteceu a Juan José Millás uma coisa estranha: foi "atropelado por um romance". Tudo começou quando lhe encomendaram uma reportagem sobre si próprio no jornal "El País". Nunca a escreveu e saiu dali um "romance" em que a personagem principal é ele, o famoso escritor e jornalista espanhol, e a sua obra. Uma autobiografia ficcionada.

Por esta viagem ao mundo dos fantasmas de Juan José Millás vamos tropeçando em alguns dos seus livros. E percebemos melhor porque foram escritos, como lhe apareceram. Alguns já estão publicados em português: "A Desordem do Teu Nome", "A Ordem Alfabética", "Assim era a Solidão", "Tonto, Morto, Bastardo e Invisível", Duas Mulheres em Praga", "Contos de Adúlteros Desorientados", "Laura e Julio".

"Estava tudo estragado. Quando eu nasci, o mundo ainda não estava estragado, mas não demoraria a estar. Sou o quarto de uma família de nove" (pág. 17). Lê-se "O Mundo" como se Juan José Milllás se tivesse deitado no divã para nós, leitores. E através dessa psicanálise o escritor brinca connosco. Nunca saberemos onde começa a mentira ou onde acaba a verdade.

"Quando comecei a escrever, já estava tudo estragado: estragadas as vidas dos meus pais, isso era evidente, e estragadas as nossas, pois tínhamos sido violentamente arrancados da classe social e do lugar a que pertencíamos" (pág. 23). É essa busca do lugar onde se pertence - "Eu não era um deles. Eu não era dali. Mas de onde era?" (pág.135) - que é todo o programa deste livro.

Logo no primeiro capítulo, quando Millás está a contar que o seu pai tinha uma oficina de aparelhos eléctricos de medicina e nos fala do seu bisturi eléctrico, "que cauteriza a ferida ao mesmo tempo que a causa", está a falar-nos do que pensa da escrita. "Quando escrevo à mão, num caderno, como agora, acho que me pareço um bocado com o meu pai quando estava a experimentar o bisturi eléctrico, pois a escrita abre as feridas e cauteriza-as ao mesmo tempo" (pág. 12).

A mãe de Millás, "a mamã", atravessa o livro de uma ponta à outra (Freud explica). Por lá passa também a relação de amizade e aprendizagem com o Vitaminas, o rapaz que vivia na mesma rua e que tinha uma doença do coração. Era o tempo das freiras e dos padres no colégio. O tempo em que passaram a ser pobres como ratazanas. Em que Millás tinha febre.

Em "O Mundo" estão também as suas mulheres, principalmente aquela que lhe disse um dia: "Tu não és interessante para mim." A sua obsessão pelas drogas. Os comprimidos. Os dias de sexo e os outros, em que não chegou a haver sexo. O frio. E claro, não podia faltar num romance de introspecção, Deus e o Inferno, que "ficava ali à esquina". Por aqui passa "o caos da infância e o mundo desordenado dos adultos".

Ao ler "O Mundo", somos constantemente confrontados com a nossa falta de mundo. Terá, sem a mínima dúvida, lugar nas listas dos melhores livros do ano.

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