Daniel Faria tem o papel principal no D. Maria

No primeiro dos três espectáculos do ciclo Estúdio Poético que o teatro nacional inicia esta quinta-feira, Pablo Fidalgo convoca para o palco a vida e a obra de um poeta cuja produção foi demasiado breve.

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Tiago Gandra

De início, não é muito claro o que faz Pablo Fidalgo debaixo da longa e pesada manta de retalhos que arrasta pela Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Com a voz abafada pela manta, estaca nalguns pontos da sala, e declama alguns poemas místicos. Também não fica mais claro quando o actor Tiago Gandra entra em palco enfiado num fato de burro e olha, entre o desconfiado e o divertidamente inocente, para o céu. Mas, aos poucos, a incursão de Pablo Fidalgo no universo da poesia de Daniel Faria – integrada no ciclo Estúdio Poético que o Nacional agora inicia – vai-se aclarando.

As peças vão-se encaixando à medida que se percebe estarmos diante de reconstituições de algumas performances e encenações teatrais assinadas pelo poeta nascido em Baltar em Abril de 1971 e desaparecido em Junho de 1999, na sequência de uma queda no Mosteiro de Singeverga (onde passou os últimos meses da sua breve vida). Num certo sentido, aquilo que o actor, encenador e poeta galego Pablo Fidalgo faz com Daniel Faria, em cena de 19 a 22 deste mês, é estabelecer uma correspondência com o poeta, recriando esses momentos da prática teatral do autor em todos os sítios por onde passava, recorrendo à recolha de vários testemunhos para nos falar de Daniel Faria e terminando com a distribuição de um longo poema escrito pelo seu punho – “não tem versos do Daniel, mas tem toda a sua paisagem, todos os seus referentes”, explica ao PÚBLICO – para se dirigir a alguém que, não tendo nunca conhecido, adquiriu uma enorme importância na sua vida.

Pablo Fidalgo descobriu a poesia de Daniel Faria na revista luso-galega Hablar/Falar de Poesia. Tinha então 16 anos e lembra-se de ler os poemas “estruturados na página como uma flor”. Achada essa primeira pista, foi à procura da obra de um autor que estranha ser ainda tão desconhecido em Portugal. “Gosto muito das coisas que estão fora do tempo, em que uma palavra é como uma sintaxe fora de tudo”, diz, justificando como pode o seu forte enamoramento pelas palavras do poeta, desaparecido um ano antes da sua descoberta. “Sendo eu adolescente, e não propriamente uma pessoa religiosa, é estranho que aquela obra se tenha tornado tão importante para mim e ainda hoje não sei muito bem porquê.” Mas desconfia. Desconfia que possa ter que ver com: a ausência de tempo – “quando se fala com as pessoas que o conheceram fica-se com a ideia de que teve uma existência irreal, como se não tivesse acontecido”, diz; e a procura constante de um lugar – “uma vida que aconteceu naquele período mas acho que só se revelará, se tornará completa e encontrará o seu lugar dentro de muito tempo”.

“Acho que a poesia do Daniel está a falar muito para a frente, para daqui a muitos anos. Mas não sou ingénuo. Se calhar também que ver com a minha relação e com a ideia quase mítica que tenho dele”, admite.

Vida apagada

Após a frequência de vários seminários entre 1982 e 1994, Daniel Faria dedicou as suas horas tanto ao curso de Teologia da Universidade Católica quanto à licenciatura em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Depois, ao procurar a reclusão monástica, Pablo Fidalgo acredita que terá partido “à procura de condições de escrita radicais e de pôr toda a vida à disposição da escrita”. Ia, no fundo, à procura de rodear-se de silêncio. “Quando ele entra no mosteiro, já entra a morrer”, defende Pablo. “Os monges falam assim da sua vida, da vida apagada, dizem que entrar num mosteiro é quase como morrer. Acho que ele sabia que essa vida era uma existência esgotada e acho que até a sua palavra estava esgotada. No último livro dele isso é bastante claro.”

Pablo, que até aqui tinha escavado na história familiar para criar as peças Estado Selvaxe e Habrás de Ir a la Guerra que Empieza Hoy, volta a servir-se da matéria biográfica para a sua criação, embora, necessariamente, de um ponto de vista bastante distinto daqueles que adoptou antes. Os testemunhos que ouviu durante o processo de pesquisa convenceram-no de que Daniel “esteve muito perto de sair daquela vida”. Um desses testemunhos, de um antigo abade, apontou-lhe uma luz que tenta que lhe ilumine o palco: a poesia de Daniel Faria “é uma resposta à palavra de Deus”.

Notícia corrigida: o actor declama no início da peça poemas místicos que não são de Daniel Faria

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