A pilhagem fiscal

Ao consagrar, no orçamento para 2015, a possibilidade de uma devolução da sobretaxa de IRS se a cobrança de impostos ultrapassar um limite que actualmente já é o de um monstro a roncar de tanto absorver e cuspir dinheiro, o governo não só reafirma que o imposto é a arma fundamental da governamentalidade (o que não é nada de novo), mas vai mais longe. Torna explícito o que nenhum governo, muito menos um governo que advoga as mais avançadas doutrinas neo-liberais, gostaria de admitir: que o imposto e a sua função distributiva não vêm depois da produção e do crescimento, mas são pelo contrário o pressuposto destes. O dinheiro nasce do imposto, a economia capitaliza-se através do aparelho de captura que são os impostos. E isto significa que o dinheiro dos impostos entra na realização do ciclo económico cujo resultado, como sabemos pelas estatísticas, são os lucros cada vez mais elevados de uma ínfima minoria. Tendo o imposto uma origem directamente política (depende da economia, mas esta, em estagnação, já não tem meios para fazer crescer a captura de impostos), teve de se alargar a zona de fiscalização, para que nada escape e cada movimento da nossa actividade metabólica esteja à mão de um Estado que perdeu a vergonha de se apresentar como agente supremo de uma pilhagem legal. Este Estado cleptocrático usa como instrumento um ludíbrio lançado aos contribuintes: quanto mais controlarem os vossos concidadãos, quanto mais desempenharem o papel de agentes do fisco, mais hipóteses têm de vir a receber uma pequena parte do que pagaram antecipadamente. O mesmo é dizer: quanto mais impostos pagarem, mais o monstro que ronca aos vossos ouvidos pode provocar, num momento da sua infinita digestão, um quase imperceptível mas generoso refluxo. Este incitamento exibe também de maneira obscena do paradoxo do liberalismo: um Estado que quer governar o menos possível e retrair-se é afinal um Estado que desenvolveu um conjunto de práticas de controle e está em todo o lado. Foucault mostrou que o panóptico (uma forma de arquitectura carceral inventada no século XVIII) é o modelo por excelência do Estado liberal. A ideia de “pilhagem legal” foi formulada por S. Tomás de Aquino e a ela se refere o filósofo Peter Sloterdijk, num texto de 2009 sobre os impostos, publicado no Frankfurter Allgemenine Zeitung. Nesse texto provocador, que deu origem a uma violenta polémica, Sloterdijk defendia a necessidade de pensar a questão do imposto não como uma dívida que o Estado cobra coercivamente aos cidadãos, mas como um dom que estes praticam (e, aqui, Sloterdijk convocava a teoria do dom, de Marcel Mauss). Sloterdijk sabia perfeitamente que o seu “programa” não era exequível e que nenhum governo iria, em função dele, reformar o Estado fiscal. Mas a sua tarefa enquanto filósofo foi cumprida com todo o sucesso: submeter o imposto e a fiscalidade burocrática a um exercício intelectual que os apreende nas suas características pré-modernas e nos seus modos de validação através de um reconhecimento jurídico. Sloterdijk mostrava assim com evidência que toda a “cultura fiscal” dos nosso dias se baseia na tradição absolutista, ou vai ainda mais longe: “Não saímos da Idade Média fiscal”. E acrescentava: “O fisco é o verdadeiro soberano da sociedade moderna”. O que é quase uma recitação de uma máxima que encontramos no clássico tratado de teologia política da Idade Média, de Kantorowicz, nas páginas dedicadas à importância do fisco para o conceito do corpo imortal do rei: Ubi fiscus, ibi imperium, onde está o fisco, está o poder. 

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