A peregrinação de Isabelle Huppert e Gérard Depardieu pelo Vale da Morte

Filme de uma fulgurante mas não espalhafatosa beleza, Valley of Love junta os dois actores três décadas depois do Loulou de Pialat.

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REUTERS/Yves Herman
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Valley of Love

Um beijo entre Gérard Depardieu e Isabelle Huppert não pode ser apenas um beijo. Nem chega a ser um beijo, em Valley of Love: é uma hesitação, motivada por décadas de separação, de histórias, da culpa que os dois, Isabelle e Gérard, sentem. São as personagens que interpretam no filme de Guillaume Nicloux.

A última vez que estiveram juntos foi há três décadas, quando o filho de ambos era adolescente. Depois separaram-se, Isabelle afastou-se do ex-marido e do filho. Que, adulto, se suicidou. Escreveu agora aos pais uma carta post mortem, a marcar encontro com eles no Vale da Morte, Califórnia, o sítio mais baixo e mais quente da terra.

Isabelle acredita nessa carta de um morto. Gérard, que é actor, uma vedeta com origem proletária, em Châteauroux, não crê. Esse quase beijo é o início de uma transferência de crença, de uma peregrinação num cenário em que as evidências não são legíveis, em que o deserto e o calor devolvem Isabelle e Gérard a si próprios. Naquelas condições limite estão sozinhos, só se têm um ao outro e aos fantasmas das suas culpas.

Foi há três décadas que os vimos pela última vez juntos, Gérard Depardieu e Isabelle Huppert: Loulou (1980), de Maurice Pialat. Cada um seguiu carreiras diferentes, Depardieu a necessitar de fazer coisas contraditórias, Huppert a aprofundar, de cada vez, a sua necessidade de coerência. É sedutora a possibilidade de comoção ao imaginarmos os dois juntos e ao imaginarmos o filme como um documentário sobre o encontro – além do mais, um deles sabe o que é o trabalho de luto por um filho: Gérard, com origem proletária em Châteauroux, perdeu Guillaume.

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Guillaume Nicloux conta que em determinado momento – quando a escolha inicial, Ryan O’Neal, não pôde ser concretizada e se chegou a Depardieu – dar continuidade ao par de Loulou tornou-se um suplemento de energia. Mas tudo tinha começado antes, com o embate do realizador com aquela paisagem do Death Valley, com o que lhe aconteceu lá e que não vale a pena esmiuçar porque desde essa altura o realizador tratou, fundamentalmente, de se desembaraçar, livrando-se dos códigos de género, da recriação da ficção.

O resultado é o filme mais solitário, mais contra-corrente da competição – contra, por exemplo, a afirmação autoritária de si próprios e do virtuosismo e do seu saber que é o que fazem os títulos mais aplaudidos do concurso, de Todd Haynes a Hou Hsiao-Hsien.  É então o filme mais crente. Valley of Love quer começar tudo do zero, com um par. Quer balbuciar o fantástico. Propõe, é essa a sua fulgurante mas não espalhafatosa beleza, que se aprenda tudo de cada vez como se fosse a primeira. Huppert (que talvez esteja em Cannes em 2016 com o próximo filme de Paul Verhoeven, Elle, que acabou de rodar – bendita seja a sua coerência) resumiu isso quando, numa pergunta sobre se ainda precisava de ser dirigida como actriz, respondeu que isso da direcção de actores talvez não exista, e que a rodagem de um filme é sempre um começo, um novo encontro. Falou em “ligeireza” – que é o desembaraço de qualquer coisa, também.

Valley of Love foi assobiado pelos não crentes, isso fica-lhe bem. Foi o filme mais bonito desta competição. E o beijo entre Isabelle e Gérard? “Não chegámos a dar um beijo”, corrigiu Isabelle, a cena é de hesitação, lembram-se? - deram sim, corrigiu Gerard, acabaram por dar…

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