A ópera rompe com a tradição: Otelo é branco

Tenores brancos têm pintado a cara para cantar o mouro Otelo, o que há muito é tabu noutros campos artísticos por questões de sensibilidade racial. A produção que abre esta segunda-feira a nova temporada da Metropolitan Opera rompe com a tradição.

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O tenor Aleksandrs Antonenko, da Letónia, é o primeiro Otelo branco na história da Metropolitan Opera DR
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A nova produção de Otelo, dirigida por Bartlett Sher, inaugura a temporada 2015-2016 da Met Opera Ken Howard/ Met Opera

Durante 124 anos, todos os Otelos que subiram ao palco da Metropolitan Opera, em Nova Iorque, tiveram a pele escura. Não que esse fosse o seu aspecto original.

Desde a primeira produção da ópera de Verdi pela Met Opera, em 1891, que tenores europeus ou norte-americanos têm pintado a cara para interpretar o “mouro” (termo usado na peça de Shakespeare, que serviu de base a Verdi) que representa “o outro”, um estrangeiro numa ilha controlada por europeus.

Nada que tenha feito pestanejar um público habituado a não questionar uma tradição onde cantores corpulentos podem encarnar artistas famintos e sopranos amadurecidas dão voz a jovens ingénuas.

Mas a Met Opera parece estar pronta para romper com a tradição. O Otelo que vai cantar segunda-feira na inauguração da nova temporada será o primeiro Otelo branco na história desta instituição norte-americana. É uma mudança significativa, que reflecte até que ponto a questão racial é, actualmente, sensível nos Estados Unidos. Não é a primeira vez, este ano, que uma velha tradição de natureza duvidosa ou, no mínimo, ambivalente, é posta em causa por um incidente, depois de anos e anos de resistência. Recentemente, as autoridades da Carolina do Sul, o estado onde teve início a Guerra da Secessão, decidiram retirar a bandeira da Confederação – um símbolo racista, associado à causa da guerra civil, a escravatura – de todos os edifícios do governo estadual, depois de nove pessoas terem sido mortas a tiro por um jovem supremacista branco numa igreja frequentada pela comunidade negra.

Pintar a cara para representar um negro tem sido tabu noutros campos artísticos – há muito que as companhias de teatro americanas abandonaram essa prática nas suas encenações da peça de Shakespeare, por ela ser encarada como um vestígio de um arquétipo racista, os black-faces (literalmente, “caras-pretas”) que eram populares em espectáculos de variedades na América do século XIX. Actores brancos eram maquilhados de preto e exageravam-se certas características, incluindo o volume dos lábios; o negro era sempre representado como alguém ignorante, preguiçoso, grotesco – uma caricatura que reflectia a forma como a América branca via a América negra.

Uma questão sensível
Quando a Met Opera enviou material promocional esta Primavera anunciando a temporada 2015-2016 aos seus assinantes, com uma fotografia da nova produção de Otelo, o tenor Aleksandrs Antonenko, um letão, parecia ter sido “submetido a um bronzeamento que correu mal”, notou alguém. As críticas sucederam-se, sobretudo nas redes sociais. Mas a direcção da Metropolitan nega que a decisão inédita de apresentar um Otelo branco esteja ligada às críticas causadas pela fotografia promocional.

“Recentemente chegámos à conclusão de que fazia sentido, que esta produção não deveria recorrer a qualquer caracterização para escurecer o tom de pele da personagem central”, disse o director-geral da Met, Peter Gelb, citado pela rádio NPR. “Tenho noção de que é uma questão sensível. Parece-nos o caminho apropriado para esta produção e estamos muito felizes com essa decisão. Em relação à fotografia da brochura, ela foi feita independentemente e muitos meses antes da própria ópera. A imagem é sobretudo resultado de um trabalho de iluminação em que se acentuaram as sombras. Era suposto dar um efeito sombrio e atmosférico. Não era nossa intenção lançar uma controvérsia ou representar a produção em si.”

“A decisão de não usar maquilhagem foi tomada durante o processo de planeamento da produção”, disse a Metropolitan à CNN. “Apesar de a personagem central de Otelo ser um mouro do Norte de África, a Met assumiu o compromisso de fazer casting de forma neutra, permitindo que os melhores cantores cantem qualquer papel, independentemente da sua identidade racial.”

Quando a Metropolitan publicou um vídeo de um ensaio de Otelo na sua página de Facebook há duas semanas, um comentador escreveu que “Otelo devia ter a cara preta”; uma mulher replicou, dizendo que o autor da frase “deveria viver no século XIX”. Um comentador brasileiro escreveu: “O som é maravilhoso, mas sinto falta de um Otelo negro. Não me convence nada.” Outro respondeu: “A sério, não tem importância. O facto de o guarda-roupa ser errado é, de longe, uma distracção maio.”

Tradição teatral
Não é só nos Estados Unidos que a “colorização” de intérpretes brancos de Otelo é uma convenção operática. Mas Paolo Pinamonti, que dirigia o Teatro Nacional de São Carlos em 2005, quando a última produção de Otelo foi apresentada em Lisboa – com o italiano Mario Malagnini no papel titular, maquilhado para parecer mais escuro do que o seu tom de pele original – defende que “na Europa o problema racial não se apresenta como nos Estados Unidos”. “O problema racial não foi vivido aqui com a mesma presença e a mesma violência”, diz. “Não é que a Europa não tenha sido racista”, mas o problema foi de certa forma levado para a América, onde a escravatura teve uma escala sem paralelo e perdurou mesmo depois da sua abolição na Europa.

Pinamonti, que está prestes a deixar o Teatro de la Zarzuela, em Madrid, para assumir a direcção do São Carlos em Nápoles, insiste que a tradição de maquilhar os intérpretes de Otelo para parecerem negros “vem do teatro”. A começar por Shakespeare: o primeiro Otelo apresentado pela companhia do dramaturgo renascentista foi um actor branco com o rosto pintado de preto. “A ópera é, antes de mais, um sistema de convenções. Não vejo nessa prática o perdurar de um racismo escondido”, defende Pinamonti.

Mas se a ópera está longe de ser a mais realista das expressões artísticas – se cantores corpulentos podem encarnar artistas famintos e sopranos amadurecidas dar voz a jovens ingénuas sem que o público vacile – por que é que Otelo, o mouro, não há-de ser branco? “Tem razão, é contraditório.”

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