A oca vida

Custa constatar como o cinema italiano, que deu Fellini, Rossellini, Antonioni, Visconti, Zurlini, Pasolini, e mais uma infindável lista de génios absolutos, tem hoje a sua ponta de lança neste paupérrimo Sorrentino, realizador de serviço para as maiores e mais badaladas cerimónias de festivais e prémios internacionais.


Custa ainda mais assistir à consagração de A Grande Beleza, filme inacreditavelmente oportunista, até (mas não apenas) na forma como canibaliza sem vergonha algumas das melhores memórias do cinema italiano para se pôr no lugar delas como seu “representante” contemporâneo. Não que destoe especialmente da restante obra de Sorrentino, e até é um filme de mau gosto muito mais comedido do que o precedente título do realizador, This Must Be the Place, o seu grotesco “filme americano”. Mas depois desse ritual de todo o cineasta europeu “ambicioso” que é dar o seu olhar sobre “a América”, Sorrentino passa o nível seguinte e a outro ritual, voltando-se para o país natal. Objectivo: fazer-lhe a “radiografia”, através da observação do mal estar das “classes ociosas” romanas. Objectivo secundário que sustenta o primeiro: ser o La Dolce Vita da segunda década do século XXI. O filme grita isto a plenos pulmões.

E grita logo no título, através da judiciosa disposição de um artigo, de um adjectivo e de um substantivo. No filme, “a grande beleza” é mencionada como uma quimera, algo cuja expectativa imobilizou o protagonista (um escritor a viver dos louros do único romance que publicou) e lhe serve de justificação para uma vida perdida entre o ócio, as festas e as conquistas amorosas. É verdadeiramente uma outra maneira de dizer “a doce vida”, para mais num contexto romano. Mas entre tudo o que separa - em riqueza e complexidade - o filme de Fellini do filme de Sorrentino atentemos num detalhe. É que se La Dolce Vita usava a “doçura” para deixar um gosto amargo, mostrando-a como uma dança sobre um vazio existencial, ao mesmo tempo não a negava: via-se a “doce vida”, e era o que nela havia de exultante, entuasiasmante (de “belo”, se quisermos) que dava um sentido, e enformava, o travo ácido do filme. Fellini filmava a “doce vida”, literalmente, e encontrava a imagem dela. Ora isso é justamente aquilo que Sorrentino não consegue fazer com a imagem da “grande beleza”. Nunca nos consegue fazer participar, ou acreditar, nessa ideia, nem pelas personagens nem pelos lugares. É apenas um anúncio, constante, nas cenas das festas, nos diálogos que sublinham a intenção de serem lidos de determinada maneira, na pose e na pretensão que banham o filme de uma ponta e outra e que são as únicas coisas que o mantêm de pé. Nem na melancolia (o longo passeio do protagonista à beira rio) Sorrentino consegue ser convincente: aquilo nunca parece genuíno, dotado de uma vida própria, equivale sempre ao anúncio de uma intenção - vejam o vazio da alta burguesia, dos intelectuais, da aristocracia - que nada vem abalar, contrabalançar ou humanizar. São figuras de papelão a cumprir a receita que Sorrentino lhes prescreveu.

O resto são efeitos, turísticos (a cena na Piazza Navona, talvez porque ir à Fontana di Trevi fosse demasiado óbvio) e publicitários, aquele habitual e desagradável “estilo” de Sorrentino, assente em devaneios de câmara sem qualquer utilidade dramática ou simbólica, travellings sem destino ou reenquadramentos sem sentido, para um ambiente de artifício, “plástico” na pior acepção do termo, que nem por um segundo está interessado num mínimo de auto-reflexão: os “instrumentos” de Sorrentino não estão ao serviço de uma “visão do mundo”, e pelo contrário são a sua “visão do mundo”. É que nem há “mundo” em A Grande Beleza, apenas o laborioso fabrico de um auto-reclamo.

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