A noite em que adormecemos na Casa de Serralves

Serralves encheu-se na quarta-feira de sacos-cama para o primeiro sleep concert organizado pela instituição.

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Na quarta-feira levou quase 40 pessoas assistiram ao sleep concert Fernando Veludo/nfactos
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Christoph Heemann (à esquerda) e Timo Van Luyck Fernando Veludo/nfactos
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Os participantes começaram a chegar às 23h munidos de sacos-cama, mantas e almofadas Fernando Veludo/nfactos
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Apesar de a música ter estado demasiado alta durante várias horas, muito pouca gente foi embora a meio da noite Fernando Veludo/nfactos
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A alvorada foi às 8h da manhã, com a música a aumentar de intensidade para despertar os adormecidos Fernando Veludo/nfactos
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Dormir lado a lado com desconhecidos não afastou o público, que quase esgotou a lotação da sala Fernando Veludo/nfactos

Em apenas uma hora e meia de concerto já se ouviam respirações profundas e ligeiros ressonares que se diluíam na música de Christoph Heemann e Timo Van Luyck, gerando uma verdadeira sinfonia do sono. Mas um sono que não era propriamente pacífico: o embalo da electrónica pastoral e vaporosa era interrompido por variações bruscas de drones e por sons tectónicos e fantasmagóricos, quase feitiçarias noise em florestas assombradas, como se os músicos quisessem brincar connosco aos sonhos e aos pesadelos ao mesmo tempo.

“Estava a dormir mas percebia que as dinâmicas do som mudavam e que os músicos faziam de propósito para nos acordar de vez em quando. Ficava um pouco confuso, sem saber onde estava, e depois voltava a ficar embalado”, conta João Hierro, um dos participantes de Sons para Sono e Sonhos na Casa de Serralves, o primeiro sleep concert (concerto de dormir) organizado por Serralves que na quarta-feira levou quase 40 pessoas a passar a noite fora de casa. A experiência repete-se na quinta-feira, das 23h às 8h. O pequeno-almoço é servido pela manhã e os bilhetes custam 10€.

A ideia partiu de Pedro Rocha, programador de música da instituição, que decidiu resgatar o conceito de sleep concert desenvolvido pelo compositor americano Robert Rich nos anos 80. Rich fez o primeiro concerto ainda enquanto estudante da Universidade de Stanford, convidando os colegas a levar o saco-cama para o átrio do dormitório onde vivia. Uma experiência, segundo ele, holística e naturalmente psicotrópica que podia ajudar a mudar a forma como as pessoas encaram o sono numa sociedade em constante frémito.

Pedro Rocha não quis ser tão ambicioso. Fazendo a ponte com a exposição de Marwan, patente no Museu de Serralves até dia 12, o programador pensou em explorar de maneira diferente os territórios de intimidade sugeridos pela obra do artista sírio. “No escuro há uma intimidade e uma relação com o espaço que não passa pela visão, mas pela acústica e outros estímulos. Num sleep concert podia ampliar-se essa estratégia de intimidade com o próprio público, que vinha dormir num sítio fora do habitual e no meio de desconhecidos”, explica Pedro Rocha.

Ao contrário do que se poderia pensar, dormir lado a lado com desconhecidos não afastou o público, que quase esgotou a lotação da sala. Os participantes começaram a chegar às 23h munidos de sacos-cama, mantas e almofadas, instalando-se nos colchões espalhados pela Casa de Serralves para assistir ao primeiro momento da noite: Room Dynamics, uma peça para som e 12 lâmpadas incandescentes controladas por computador pelo compositor canadiano Adam Basanta. Algumas pessoas já estavam deitadas e de olhos fechados, outras seguiam os espasmos da electricidade que geravam jogos de sombra e novas percepções relativamente à arquitectura da Casa.

Esta performance audiovisual funcionou quase como um desligar das luzes, fazendo a transição, pela meia-noite, para o sleep concert guiado pelo músico alemão Christoph Heemann, juntamente com o seu acólito Timo Van Luyck. Heemann já tem um longo currículo na música experimental e na electroacústica (foi co-fundador dos dadaístas H.N.A.S, sem esquecer os projectos com nomes como Jim O’Rourke e os Current 93) e não é um principiante na música de efeitos hipnagógicos (ouçam-se as deambulações sonoras paisagísticas dos Mirror), mas foi a primeira vez que fez um sleep concert. “O Pedro desafiou-me e eu aceitei logo. Interessou-me poder preparar uma peça tão longa, de oito horas, e perceber como o som pode influenciar os ciclos de sono. Claro que não vai ser uma coisa sincronizada, as pessoas vão estar acordadas e a ouvir em horas diferentes”, disse ao PÚBLICO Christoph Heemann antes do concerto.

E, de facto, cada participante parecia estar no seu próprio mundo: a dormir profundamente, a flutuar de olhos fechados mas a espreitar o telemóvel de quando em vez, deitado a ouvir a música atentamente como se estivesse num concerto normal, a olhar para o céu estrelado pela janela, a fazer uma pausa para ir à casa de banho vestir o pijama ou lavar os dentes. Foi lá que apanhámos Maria Sá, que já conhecia o trabalho de Christoph Heemann. “Isto não tem muito a ver com o que ele faz, mas estou a gostar. As partes mais calmas fazem-me lembrar o William Basinski", compositor americano, luminária da música experimental e da ambient music, "mas ainda não consegui perceber como o som influencia o sono a nível neurológico”, confessa.

Mesmo passando pelas brasas é possível perceber como a música de Heemann e Van Luyck, feita de improvisações com electrónica, sons pré-gravados e instrumentos construídos em casa, tenta acomodar-se às variações do cérebro no processo de adormecer: os sons telúricos e mais trepidantes e tumultuosos de quando nos estamos a preparar para largar o chão e saltar para um estado de inconsciência; os mantras ascéticos de electrónica atmosférica, textural e aconchegante para quando já entrámos no mundo dos sonhos. Apesar de a música ter estado demasiado alta durante várias horas, muito pouca gente foi embora a meio da noite.

A alvorada foi às 8h da manhã, com a música a aumentar de intensidade para despertar os adormecidos. Seguiu-se o pequeno-almoço, servido na Casa de Serralves, com os participantes a aproveitar para trocar opiniões. “Tive noção, enquanto dormia, do que me estava a acontecer. Sonhei bastante e lembro-me de tudo, o que não é costume”, diz João Hierro, que foi levado de surpresa para Serralves pela namorada. “É curioso reparar nas diferenças do apelo ao sono que nascem com texturas mais melódicas ou negras. Senti que quanto mais melodiosas eram as explorações sonoras, mais depressa o sono chamava. Por estar constantemente à espera do que vinha a seguir acabei por adormecer apenas pelas quatro da manhã”, conta André Gomes. “Valeu a pena, mesmo a meio de uma semana de trabalho”.

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