A noite dos Óscares, o ritual do habitual

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Martin Scorsese assina com "A Invenção de Hugo" um filme para toda a família DR

O ritual anual volta esta madrugada a cumprir-se, com milhões a sentarem-se à frente do televisor para assistir à 84.ª cerimónia dos Óscares de Hollywood, apresentada pelo actor Billy Crystal no Hollywood & Highland Center de Los Angeles a partir das 17h30 locais (1h30 de Lisboa, com transmissão directa pela TVI). E aquilo a que vão assistir é a uma imensa "feira das vaidades", como convém a uma cerimónia que foi desde sempre pensada como celebração da indústria americana do cinema mas que se tornou, com o correr dos anos, na entrega de prémios mais importante da 7.ª Arte.

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Paradoxalmente para uma cerimónia que é vista em todo o mundo, os Óscares parecem em 2012 mais paroquiais do que nunca, através de uma lista de nomeados que se debruça ao mesmo tempo sobre a celebração do cinema e sobre a sociedade americana. Os dois filmes com mais nomeações são duas homenagens ao cinema clássico.

De um lado, A Invenção de Hugo, o filme para toda a família de Martin Scorsese, adaptação de um romance juvenil de Brian Selznick ambientado na Paris dos anos 1920, onde Georges Méliès, o inventor dos efeitos especiais, tem um papel importante - 11 nomeações, incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador, para lá de uma resma de citações técnicas.

Do outro, O Artista, o filme mudo e a preto e branco de Michel Hazanavicius sobre uma vedeta do mudo que se vê esquecida quando o som chega ao cinema em 1929 - dez nomeações, incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor para Jean Dujardin e Melhor Actriz Secundária para Bérénice Béjo.

E, de algum modo, outros nomeados que não partem favoritos evocam também a magia do cinema e a nostalgia do passado. Em Cavalo de Guerra, Steven Spielberg ensaia uma abordagem à saga familiar típica dos anos 1940 e 1950 (seis nomeações, incluindo Melhor Filme), que evoca também os clássicos sobre a Primeira Guerra Mundial; em Meia-Noite em Paris, Woody Allen brinca com a nostalgia de uma Paris dos "anos loucos" que o cinema nos ajudou a cristalizar (quatro nomeações, incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Argumento).

Nas categorias de representação, Michelle Williams (Melhor Actriz) e Kenneth Branagh (Melhor Actor Secundário) recriam Marilyn Monroe e Laurence Olivier em A Minha Semana com Marilyn, Meryl Streep (Melhor Actriz) habita Margaret Thatcher em A Dama de Ferro, e Glenn Close (Melhor Actriz) e Janet McTeer (Melhor Actriz Secundária) fazem-se passar por homens na Dublin do século XIX em Albert Nobbs, prolongando a velha tradição de actores nomeados por desafios físicos.

Inevitavelmente, para uma Holly-wood que ainda entende ser o centro do universo cinematográfico, são os EUA, a sua sociedade, os seus problemas que acabam por estar no centro de muitos das outras nomeações. Em Extremamente Alto, Incrivelmente Perto, de Stephen Daldry (duas nomeações, Melhor Filme e Melhor Actor Secundário para Max von Sydow), é do 11 de Setembro que se fala. As Serviçais, de Tate Taylor (quatro nomeações - Melhor Filme, Melhor Actriz para Viola Davis e Melhor Actriz Secundária para Jessica Chastain e Octavia Spencer), aborda as tensões raciais no Sul americano da década de 1960 através das relações entre as patroas brancas e as empregadas negras.

Moneyball - Jogada de Risco, de Bennett Miller (seis nomeações, incluindo Melhor Filme e Melhor Actor para Brad Pitt), usa o "passatempo americano" do basebol para falar do modo como o negócio e o capitalismo vão contaminando o mundo do desporto. E A Árvore da Vida, de Terrence Malick (três nomeações, incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador), centra-se na memória de uma infância americana no Texas dos anos 1950 - por muito que o filme, já premiado com a Palma de Ouro em Cannes 2011, não seja "apenas" sobre isso e faça figura de "intruso" nesta lista de nomeados. Afinal, Malick é conhecido por ser um recluso que recusa as convenções de Hollywood e que mantém o seu estatuto de mestre cineasta que se borrifa.

Sobra Os Descendentes, de Alexander Payne (cinco nomeações, incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Actor para George Clooney) - que é uma história ao mesmo tempo americana, ambientada num dos estados menos usados por Hollywood para dramas sérios (o Havai), e universal, no modo como aborda as questões de uma família que se vê forçada a reconstruir-se com a morte anunciada da mãe.

Mas a presença de Os Descendentes remete também para uma outra questão interessante desta lista: a presença subterrânea da última grande era criativa do cinema americano, os anos 1970, que revelaram uma geração de "rebeldes" que são hoje figuras tutelares e injectaram uma dimensão adulta no cinema americano. Scorsese, Spielberg, Malick e Allen fizeram parte dessa renovação, são hoje "padrinhos" que a Academia tem vindo a reconhecer mais; Os Descendentes, As Serviçais, Extremamente Alto, Incrivelmente Perto e Jogada de Risco são filmes que se inscrevem claramente nessa linhagem.

O que deixa O Artista, paradoxalmente, como a "carta fora do baralho" que todos apontam como o favorito - porque é um filme francês que quer ser americano, porque é um filme europeu que celebra Hollywood. É, aliás, também por isso que é um dos muito poucos filmes europeus que hoje conseguem transcender a categoria de Melhor Filme Estrangeiro onde, habitualmente, o paroquialismo dos Óscares melhor se nota, preferindo premiar filmes menores em vez de obras de peso como O Laço Branco, de Michael Haneke, ou Um Profeta, de Jacques Audiard (este ano, Uma Separação, do iraniano Asghar Farhadi, parte favorito, mas com a Academia nunca se sabe).

Amanhã por estas horas, já se saberão os premiados. Durante mais um par de semanas, os vencedores vão dar que falar. E, ao longo dos próximos meses, compreenderemos se estes nove filmes vão ficar para a história ou se irão ser esquecidos como tantos vencedores de anos anteriores.

Artigo completo colocado online às 11h00
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