A natureza nunca foi virgem

Gabriela Albergaria trabalha processos de transformação e classificação na sua mais recente individual em Lisboa.

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Todas as folhas mortas de um parque de Brooklyn reduzidas a um Pantone: impor às cores da natureza a artificialidade de um código é um acto cultural, como o é o abate de árvores em meio urbano

À entrada da galeria, três alcatifas de lã em tonalidades ocre dispõem-se no chão. Cada alcatifa ostenta um desenho diferente: o número do código Pantone referente à sua cor. Dizem-nos que estes três tons correspondem às cores mais presentes na natureza. Mas a sua transposição para um material que, embora natural, resulta de um processo de transformação é inusitada. Pela surpresa que provoca, talvez em consequência disso mesmo, acentua a mudança operada: do “natural” para o manufacturado, da paisagem para a galeria.

O trabalho de Gabriela Albergaria, que actualmente divide residência entre Lisboa e Nova Iorque, tem-se concentrado na análise dos processos de transformação de elementos que associamos à natureza e ao reino vegetal. Já vimos árvores trazidas para o espaço do museu que se acoplavam por enxertia com espécies diferentes. Já vimos também plantas em que a copa estava no chão e a base no ar. Ou, no Museu da Cidade, há uns anos, talhões de terra que trocavam o jardim pelo espaço modernista do Pavilhão Branco. Mais do que o género pictórico que, desde o século XVI, tomou a paisagem por único tema, Gabriela Albergaria considera a natureza no seu todo cultural para nos afirmar, peremptoriamente, que até mesmo essa natureza é uma construção. O espaço virgem, impoluto de cultura e de civilização, que o nosso Ocidente ainda hoje procura freneticamente em viagens organizadas e outras excursões não passa, afinal, de uma utopia, mais uma a acrescentar a uma longuíssima lista. 

Toda a exposição decorre desta constatação. Toda ela acentua as transmutações que operamos nos materiais, ou que decorrem das próprias leis da física aplicadas ao espaço não urbano. Numa outra sala, há, por exemplo, pequenas esculturas em que peças de vidro reproduzem e aumentam gotas de chuva que congelaram no momento em que tocaram o solo; a caixa de cartão utilizada para as trazer para a galeria é também inserida na escultura, mas virada do avesso. Noutro local, há uma reprodução de uma folha vegetal em bronze, uma folha tão rara que foi preciso que a planta que a gera deixasse cair um exemplar. Noutro local ainda, uma peça em porcelana é a exacta réplica de uma cunha que se coloca em certas árvores abatidas para as impedir de cair. Finalmente, o desenho institui uma última instância de transformação: uma árvore segmentada em várias folhas de papel (sabemos depois que foi abatida e substituída por uma espécie diferente), e um mostruário nas mesmas tonalidades ocre e verde seco que toda a exposição exibe, num inventário das cores encontradas nas folhas mortas de um parque em Brooklyn.

Num texto escrito para Time Scales, Delfim Sardo menciona a melancolia que todo o pensamento sobre a morte acarreta. De facto, se a morte perpassa todos os objectos que deram corpo a cada forma que aqui vemos, essa melancolia, como constatação do vazio provocado pela passagem do tempo, é uma evidência que se impõe. Contudo, mais fortes do que ela são as mutações exigidas pela nossa própria sociedade, que aqui se revelam gritantes. Impor às cores da natureza a artificialidade de um código Pantone é, afinal, um acto cultural, como o é o abate das árvores no meio urbano ou a classificação de espécies protegidas em qualquer parque natural — que não passa, portanto, de um museu ao ar livre. Gabriela Albergaria expõe incessantemente os processos, tão antigos como o próprio homem, que se inventaram para classificar e transformar o visível. Trata-se de domesticar a natureza — não no sentido habitual para esta expressão, de submissão abstracta da vida vegetal ou animal ao domínio do homem, mas do processo em si, do constante treino que é necessário para nos fazer esquecer que o que ali esteve era, precisamente, vida. 

Cada exposição, cada série de trabalhos desta artista recorda-nos que essa vida, por muitos sinais de morte que dela tenhamos no espaço confinado da galeria, está sempre prestes a irromper, como as ervas daninhas em qualquer interstício do alcatrão urbano. Tudo o que dela fazemos é cultural, e vai muito mais longe do que o paciente trabalho desse artista do século XVI que tentava compor a paisagem ideal no espaço do seu atelier. Como culturais são o olhar que sobre ela deitamos ou as palavras que usamos para sobre ela discorrer.

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