A música desta nova Trácia é antídoto para um mundo “insanamente injusto”

Thrace: Sunday Morning Sessions” junta violoncelo francês e lira grega a percussão iraniana. Um encontro entre Ásia e Europa, uma ponte entre a Antiguidade e o nosso tempo.Jean-Guihen Queyras fala-nos sobre o concerto de abertura do Ciclo Músicas do Mundo da Gulbenkian. Este sábado, às 21h

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A Trácia estendia-se pelo território onde encontramos hoje pedaços da Bulgária, Roménia, Grécia e Turquia. Era habitada por homens que lutaram e acompanharam as campanhas de Alexandre O Grande. Era trácio Espártaco, o gladiador que liderou uma revolta de escravos contra o império romano. Nasceram na Trácia os filósofos Protágoras ou Demócrito. Conjunto de dezenas de tribos durante a maior parte da sua existência sem hierarquia ou geografia definida, deles se dizia serem um povo curioso perante outras culturas, um povo guerreiro e amante do vinho, de que eram talentosos produtores, e da música – naquele território terá visto a vida Orfeu, que encantava todos os seres vivos com a sua lira. 

A Trácia, ponte entre a Europa e a Ásia, terreno fertilizado por grandes civilizações, como a romana, a grega e a persa. A Trácia, civilização da antiguidade que visitaremos no concerto de abertura do Ciclo Músicas do Mundo da Fundação Calouste Gulbenkian, este sábado (Grande Auditório, 21h, 18€). Ou melhor, uma ideia de Trácia. “Descobri nessa civilização uma metáfora ideal para o nosso projecto: transfronteiriça, aberta a outros povos e à interacção com eles. É isso que procuramos no nosso grupo, e talvez seja disso que o mundo precisa por estes dias”. Di-lo em entrevista por email Jean-Guihen Queyras, violoncelista francês de 49 anos, reconhecido pelo virtuosismo e elogiado pelo eclectismo de um repertório em que cabe Bach e Pierre Boulez (foi solista do Ensemble InterContemporain fundado por este em 1972), onde coexistem Haydn e Ligeti, o barroco, o clássico, o contemporâneo, o jazz e as músicas de outras latitudes. Agora, a Trácia. Ou melhor, Thrace – Sunday Morning Sessions, ou seja, a música que resulta do encontro do violoncelo de Queyras, uma lira (a do grego Sokratis Sinopoulos) e o zarb, o bendir (instrumentos de percussão persas) e o udu, um aerofone (igualmente persa), tocados pelos irmãos Bijan e Keyvan Chemirani.

O álbum, editado em Agosto pela Harmonia Mundi, promove um encontro feliz e frutuoso, num momento febril pela cavalgada da percussão, noutro tocante pelo majestoso mistério que evoca quando lira e violoncelo dialogam de olhos cerrados (os nossos, perante a força evocativa do som). Encontra-se a tradição europeia e a asiática. Encontram-se velhos conhecidos: os irmãos Chemirani, filhos do grande percussionista iraniano Djamshid Cherimani, radicado em França desde a década de 1960, são velhos amigos de Queyras. “A amizade de uma vida que me une a Keyvan e Bijan foi o início [do projecto], o que se combinou com a minha curiosidade por estilos de música diferentes dos que aprendi no Conservatório”, contextualiza o violoncelista.

O título do álbum que apresentarão na Gulbenkian aponta, por sua vez, para outro elemento determinante na criação desta música. Sunday Morning “combina o nome de uma das nossas melodias com uma referência ao jazz e às jam sessions. Além disso, evoca um encontro com amigos fora do contexto habitual, fora, até, do tempo do concerto”. Não surpreende, portanto, que Jean-Guihen Queyras confesse que, enquanto músico, “o novo elemento essencial neste projecto é a improvisação, a definição da forma de uma peça no momento da sua performance”. O elemento de improvisação, neste formato, pode ser a grande novidade de Sunday Morning Sessions para Jean-Guihen Queyras, mas o jazz tem, nele, raízes fundas. Enquanto refere as muitas viagens que fez na infância, incluindo os três anos passados com os pais na Argélia, entre os 5 e os 8 anos, como determinantes para a sua curiosidade perante outras culturas, dirá que um dos primeiros discos com que manteve uma relação obsessiva, “muito antes de começar a tocar violoncelo”, foi Drum Suite, de Art Blakey And The Jazz Messengers. Tudo aquilo que tentou fazer em Thrace: Sunday Morning Sessions já estava no disco editado em 1957: “A percussão, um grande músico à procura de pontes entre a música de dois continentes, naquele caso, o norte-americano e o africano”.

Em 2017, Queyras, artista residente da Fundação Gulbenkian na temporada de 2010/2011, regressará ao Grande Auditório para se juntar ao Belcea Quartet, fundado em 1994 no Royal College of Music, em Londres, pela violinista romena Corina Belcea, e pelo violetista polaco Krysztof Chorzelski. Dia 14 de Fevereiro, o Concerto de São Valentim integrará peças de Schubert e Chostakovich. Antes e depois desse concerto, o Ciclo Músicas do Mundo programa, entre outros, concertos de Hindi Zahra (5 de Novembro), de Angelique Kidjo (1 de Dezembro), de Adriana Calcanhotto (3 de Fevereiro), de António Zambujo (cantará Chico Buarque a 1 de Março) ou de Asif Ali Khan (a imponência do canto sufi ouvir-se-á a 9 de Maio).

O arranque do ciclo far-se-á num território mitificado, a Trácia ponte entre Europa e Ásia, a Trácia da abertura perante o outro. Através do concerto, evocar-se-á um espírito que, defende Jean-Guihen Queyras, é mais necessário que nunca. “Este é realmente o tempo de cada um fazer o que puder para lutar contra esta negra tendência actual de ódio ao vizinho e de construção de muros. Essa linha de pensamento baseia-se no medo e é apenas consequência da manipulação de uns poucos e poderosos, com o objectivo de pôr pessoas pobres e frustradas umas contra as outras num mundo cada vez mais insanamente injusto”. Queyras dá rosto a alguns desses poucos: Trump, Erdogan e Putin. “São rostos emblemáticos, mas não exclusivos, desta corrente”. Contra eles, o violoncelista tem uma arma. “Ainda que tantas vezes impotente, a cultura e a educação são os únicos verdadeiros antídotos”.

Com Sokratis Sinopoulos e Bijan e Keyvan Cherimani, Queyras construiu um novo lugar, de raízes muito antigas mas absolutamente moderno. Esta sábado, uma nova Trácia reergue-se. 

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