Fazer música, mudar a vida

O Prémio Jovens Músicos organizou um festival de três dias e assumiu-se também como um espaço de reflexão e de divulgação de projectos que estão a mudar o panorama musical no país.

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Orquestra Geração Pedro A. Pina/RTP
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André Nadais e Pedro Tavares forman o 2euros Duo Pedro A. Pina/RTP
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Lourenço Sampaio toca viola de arco Pedro A. Pina/RTP
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Gonçalo Lélis, violoncelista Pedro A. Pina/RTP
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Perspective Trio, formado por Pedro Costa, Guilherme Sousa e Paulo Ferreira Pedro A. Pina/RTP

O Prémio Jovens Músicos (PJM) organizou, entre a quarta e a sexta-feira passadas, três dias intensos na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. O programa incluiu concertos, recitais, lançamentos de discos, conversas e encontros. Sob o lema A música muda a vida das pessoas, este festival, promovido pela Antena2, propôs este ano alargar o âmbito da sua acção.

Para o director do PJM, Luís Tinoco, aprofundar esse caminho de "articulação do prémio com o meio musical e com o ensino" era perfeitamente natural. Daí que o festival se tenha assumido como "mais do que uma plataforma de ligação entre a aprendizagem e a profissionalização destes jovens músicos", acrescenta. A ideia é que o festival sirva também "para divulgar e apoiar iniciativas e projectos com um valor inestimável e que ultrapassam, em grande medida, a dimensão performativa da música, usando os canais privilegiados de que dispomos, como a rádio, a televisão, a web e parcerias institucionais", diz o director do PJM.

Prémio? Se está a pensar em concursos televisivos, não é nada disso. No Prémio Jovens Músicos, "o lado competitivo é o que menos me interessa", nota Luís Tinoco. Muito mais importante "é a função de catapultar e ajudar a formar músicos, mas não como os concursos televisivos em que há cinco minutos de fama sem sustentação".

Uma atitude perante a música
De qualquer modo, houve "vencedores", jovens músicos que participaram e ganharam prémios: prémios monetários, bolsas, concertos agendados com grandes orquestras ou a possibilidade de gravar um disco. Vale a pena dizer os nomes dos primeiros: João Miguel Silva (oboé), Lourenço Sampaio (viola de arco), Bruno Filipe Santos (trompete), Pedro Corte-Real (saxofone) e Gonçalo Lélis (violoncelo) foram os laureados PJM. Houve ainda dois vencedores na categoria de música de câmara, o 2 euros Duo e o Perspective Trio. 

Todos se apresentaram em concerto na noite da Grande Final PJM, na quarta-feira e na tarde de quinta-feira, no caso da música de câmara. Lourenço Sampaio, vencedor na sua categoria mas também do Prémio Maestro Silva Pereira de Jovem Músico do Ano 2015, considera este prémio "a realização de um sonho". "É o reconhecimento, no meu país, da qualidade que consegui atingir; fico emocionado", acrescenta. Como se chega lá? "Trabalho, talento e sorte", diz o músico numa penada. E conta-nos um pouco do seu percurso: "Tinha bons resultados, mas não sabia que ia seguir música. Havia um preconceito de ir para música – há emprego, não há emprego?" Por isso, Lourenço Sampaio continuou a estudar bioquímica, mas a música acabou por falar mais alto. E, afinal, o emprego e o entusiasmo vieram mesmo daí. Pelo meio, houve um professor e uma peça de Carlos Paredes que tiveram muita importância: "Nunca mais me esqueci, ficou-me na memória". E não parou enquanto não a tocava.

Na noite de sexta-feira, no concerto final do PJM, Lourenço Sampaio tocou essa Fantasia de Carlos Paredes, depois de um magnífica interpretação de um concerto de Bartók na viola de arco. A plateia quase cheia do Grande Auditório Gulbenkian percebeu que algo de especial havia naquela música para ele.

Quando começou, Lourenço Sampaio aprendeu com o seu professor Jean-Loup Leconte (o tal que lhe mostrou a peça do Paredes) "uma atitude perante a música, e a descobrir que a música se cultiva como prazer e não como sacrifício. É um círculo virtuoso: gosta, tem jeito, continua..." Mas, avisa, "também é preciso organização, disciplina, concentração". O seu primeiro professor ensinou-o a "ser inteligente a estudar, para evitar a permanência do erro. Isso faz muita diferença."

O público aplaudiu Lourenço Sampaio como quem lhe deseja muita sorte e um futuro radioso. Ele sabe que, "mais importante do que ganhar, é a preparação que se faz". "Claro que a tocar com a Orquestra Gulbenkian aprendo imenso, mas o prémio é só uma ferramenta para chegar mais longe, diz". Lourenço vive actualmente em Londres. Quem sabe que vôos fará ainda.

Trampolim, para onde?
Falámos com alguns dos outros laureados, para perceber donde vêm, para onde vão. E há casos bem diferentes: Gonçalo Lélis, por exemplo, já vem de uma família de músicos. E preparou-se durante todo o ano lectivo anterior para este concurso. Diz que "ajuda ter um objectivo concreto, em vez de ser um objectivo de cinco ou dez anos." Mas apesar da sua juventude, também sabe que "há coisas que só vêm com o passar do tempo".

Gonçalo Lélis estuda agora em Madrid e quer contactar com diferentes professores, tocar de tudo. Encaminhado e estimulado por um professor, Pavel Gomziakov, o violoncelista "está lançado", como se costuma dizer. E talvez um dia oiça de novo o quinteto A truta, de Schubert, com a Jacqueline du Pré, que ouviu vezes sem conta quando era novo (num VHS!), e agradeça à grande violoncelista ter descoberto, graças a ela (e aos seus pais), a sua vocação.

Caso bem diferente é o de André Nadais, que venceu na categoria de música de câmara, nível médio. Ambos com 18 anos, André e o seu colega do 2euros Duo, Pedro Tavares, deram um surpreendente recital na Gulbenkian. Este duo de marimbas mostrou que a maturidade musical não depende só da idade.

André começou a aprender música no Conservatório da Jobra, no distrito de Aveiro. "Primeiro, como passatempo". Mas depois... "começámos a gostar do que fazíamos e percebemos que era um mundo onde queríamos trabalhar", diz. Foram para uma escola profissional de música, e continuam em estudos superiores. André viajou para Manchester, Pedro foi para Lisboa. E agora ganham prémios destes e têm um entusiasmo contagiante a fazer música.

O agrupamento vencedor em música de câmara nível superior foi o Perspective Trio. Pedro Costa, pianista, faz parte do trio com Guilherme Sousa e Paulo Ferreira. O pianista que foi motivado a "alimentar-se de música, não de forma teórica e forçosa, mas aprendendo a aproveitar a música pela essência". A partir daí, foi um processo "natural." Seguiu estudos na escola profissional de Espinho. Quando perguntamos que "essência" da música é essa, Pedro Costa fala da "indescritível beleza de passar a ideia do compositor" e do "momento de partilha com o público, que faz valer a pena todo o trabalho árduo de preparação". 

Muitos ex-laureados do PJM estiveram presentes em concertos, dando razão ao director do festival quando fala da criação de uma "família jovens músicos", uma comunidade musical que passou por esta "rampa de lançamento". É o caso do Ensemble MPMP, com dois ex-laureados, na tarde de quarta-feira, tocando quatro poemas de escárnio e maldizer recriados por jovens compositores contemporâneos portugueses. Porque o estímulo à criação actual também interessa a este festival.

Na sexta-feira, tivemos a sorte de assistir à flautista Adriana Ferreira, também ex-laureada, a tocar de forma soberba com os Músicos do Tejo. Os vencedores em música de câmara de 2013 também voltaram: o Trio do Desassossego, tocando o clássico Mozart e o contemporâneo Rihm com o mesmo entusiasmo. Agora continuam juntos um percurso académico e profissional na Alemanha.

A música pode ajudar
O Festival Jovens Músicos deste ano deu uma especial atenção às  várias dimensões da música, do ensino à performance em palco, das novas formas de difusão e criação (que passam pela internet, pois claro) à importãncia da música como factor de transformação social. Porque a formação de músicos não existe só ao mais alto nível e na sua dimensão profissionalizante.

O director do PJM sublinha a importância de "projectos de música na comunidade, com dimensões sociais, de inclusão". Porque, diz, "em tempos difíceis, a música pode ajudar". Mas ajudar como? O festival lançou o slogan "Deixa a música mudar a tua vida". Mas entre uma conversa na tarde de quinta-feira sobre "música como factor de inclusão" e o belo concerto do Ensemble Juvenil de Setúbal, percebemos melhor como, com exemplos bem concretos. E se restassem dúvidas quanto à existência de extraordinários projectos de ensino da música que pretendem cruzar a qualidade artística com uma vertente de inclusão social, bastava ir ao concerto da noite de quinta-feira, onde, para além do projecto "profissionalizante" da Jovem Orquestra Portuguesa (ligada à Orquestra de Câmara Portuguesa de Pedro Carneiro), se pôde ouvir e ver a gigantesca e entusiasmante orquestra de gente nova que é a Orquestra Geração, projecto musical e social inspirado na experiência de "El Sistema", na Venezuela, adaptado à realidade portuguesa, e neste caso com o apoio pedagógico da Escola de Música do Conservatório Nacional.

A ideia é a mesma: promover o sucesso educativo e favorecer a inclusão social através da música. Para Luís Tinoco, "estes projectos musicais com jovens em que se favorece a partilha, a integração no meio e as capacidades humanas devem ser divulgados e apoiados. Estava a fazer falta ao prémio".

Não há machado que corte...
Exemplos de vitalidade de intérpretes, compositores e escolas de música em Portugal, apesar das dificuldades e dos cortes. Luís Tinoco chama a atenção para as "enormes machadadas" que os decisores políticos podem dar nesta vitalidade se a desconhecerem e estiverem desatentos ao ensino artístico. Para o director do PJM, "a música em Portugal está a viver um momento de grande regeneração, está cheia de vida e de projectos com elevados padrões de exigência, envolvendo músicos de grande qualidade técnica e artística. E é impressionante observar como essa qualidade se manifesta em idades cada vez mais precoces."

Perante tal vitalidade, a atitude de cortar no ensino artístico e impedir o seu desenvolvimento não será um sinal contraditório? "Se existem contradições, elas não estão seguramente naqueles que ensinam e estudam música", diz Luís Tinoco. "Elas vêm de fora e só podem resultar de um desconhecimento daquilo que se passa no campo e de uma insensibilidade crónica no nosso país, que já vem de trás, para o mundo da música erudita." E acrescenta, sem papas na língua: "Salvo honrosas excepções, confesso que não tenho visto muitos 'decisores' na plateia. Ficam a perder, pois garanto que o que aqui se passa tem muito mais vida do que a música que se ouve nas arruadas..."

Apesar de tudo, não há machado que corte a força da música e os sonhos destes jovens. Sonhos que parecem simples: fazer música, mudar a vida, tocar com os outros. Lourenço Sampaio fala-nos dessa experiência que é tocar numa orquestra e como fazer música é "uma comunhão, estar com os amigos". "Uma pessoa sente uma coisa maior do que aquilo que é, sente que é parte de algo maior do que nós. É um clique emocional muito forte. Nunca fui alheio a isso. Nem aos valores da música, a solidariedade, e como ela ajuda a conhecer o ser humano".

De prémio na mão, Lourenço Sampaio vai continuar o seu caminho, na procura de fazer sempre melhor. Com a sua companheira, a música.

 

 

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