À mulher de César não basta parecer

Que uma instituição ou um cidadão com responsabilidades públicas representem papéis de eunuco, como se ninguém conhecesse os segredos por trás dos enredos, é insuportável. Ficar calado, também.

Foi finalmente anunciado o novo director do Teatro Rivoli e do Teatro do Campo Alegre. Em seis meses, mudou a paisagem dos teatros municipais no Porto. Um novo tempo se anuncia entre a Ribeira e a VCI. Será? Toda a gente diz que o concurso público estava decidido à partida.

Em Lisboa, um membro da Comissão de Acompanhamento da Direcção-Geral das Artes apresentou uma encenação no Festival de Almada, que ele próprio fiscaliza. Toda a gente diz que o encenador que, para disfarçar, assinou o espectáculo, não é o verdadeiro autor. São entremezes de gosto duvidoso, no melhor da tradição nacional da esperteza saloia, que mancham a reputação da instituição do Porto, no primeiro caso, e do cidadão de Lisboa, no segundo. O que dizer?

A imagem de isenção que a Câmara Municipal do Porto tentou passar com o concurso para a direcção do Rivoli e do Campo Alegre é uma farsa de primeira. O número começou com a expulsão, pela calada da noite, da Seiva Trupe, num processo em que todos clamam inocência e todos têm rabos-de-palha, e terminou com a confirmação do nome que se dizia não à boca pequena, mas alto e bom som, entre os teatreiros, desde pelo menos Janeiro. Por cima disto, uma manta de respeitabilidade, mas curta e de malha larga, que deixa os pés gelados e o nariz roxo de frio.

Podiam – deviam – ter nomeado o antigo director do Teatro Virgínia, de Torres Novas, à primeira. Fariam melhor serviço à cidade e à causa pública afirmando que tinham uma ideia para a cultura no Porto; anunciando que a pessoa certa para concretizar essa ideia era fulano; e dizendo que depois se sujeitariam ao escrutínio dos cidadãos. Ao contrário, fizeram propaganda eleitoral com a promessa do concurso, conseguiram que se levantassem dúvidas e acusações sobre o mesmo, desbarataram a credibilidade dos eleitos e dos jurados em meia-dúzia de meses, e ainda arrastaram pelas redes sociais o nome dos candidatos e, principalmente, do futuro vencedor. Como se os sacrossantos concursos garantissem a ética de quem quer que seja! O novo director começa a nova missão comprometido com um processo duvidoso. Não havia necessidade.

Eu não acredito em cabalas. Acredito na esperteza saloia. A sorte dos recém-eleitos é que sucedem a um autarca que, nas palavras do próprio, quando ouvia falar de cultura, sacava da máquina calculadora. O mérito é terem feito uma boa escolha. Se o escolhido fizer no Porto um trabalho no espírito do que fez em Torres Novas, a Invicta pode respirar de alívio.

Em frente à CMP está uma estátua de Garrett cuja perene homenagem põe a fasquia bem alta para os artistas e políticos do Porto. Uma vez foi coberta, em forma de protesto contra o descaso a que fora votada a memória do escritor e parlamentar. Hoje em dia é como se estivesse coberta pelo falso manto da transparência, que promete revelar, mas afinal oculta os processos. O que será que pensam as pessoas quando olham para ela?

No Festival de Almada foi apresentada uma peça dirigida por um membro das Comissões de Acompanhamento da DG Artes que, como o nome indica, fiscalizam as actividades que a DG Artes apoia. Até aqui, tudo bem. Para ser membro de uma dessas comissões, algum currículo se há-de ter, e parece razoável que os fiscais conheçam o meio que fiscalizam, e possam ser encenadores, entre outras coisas. Não têm de ser eunucos. O problema é que o fiscal tem a seu cargo, entre pastas de outras entidades, a do próprio Festival de Almada. O conflito de interesses é claro e coloca-se de uma maneira bastante prática: quando chegar a hora de avaliar, como irá o avaliador defender os interesses da instituição que representa e os interesses do particular que é, as duas coisas ao mesmo tempo? Não se pode ser juiz em causa própria. Ou melhor… poder, pode! Confrontado com a situação, o encenador-inspector passou a encenação a outra pessoa, desvinculando-se do trabalho. Passou, mais ou menos. Comparando o espectáculo que foi visto em Julho de 2014 com o espectáculo que estreou em Setembro de 2013, o que resulta é um passatempo de descobrir as diferenças. Não é preciso grande perícia para concluir isso. Jorge Listopad comentou no Jornal de Letras que o espectáculo dava saudades do filme de João César Monteiro, baseado no mesmo texto, mas em que não se via nada. Mas não se pode fechar os olhos a tudo.

Tentando superar este conflito, o fiscal terá declarado solenemente, perante a DG Artes e o festival, que dali para a frente nada tinha a ver com o trabalho. As instituições envolvidas partiram do princípio que os indivíduos são os primeiros e últimos responsáveis pelos respectivos actos, e lavaram as mãos, dando-se por satisfeitas com as explicações do cidadão. Não se pode crer. O trabalho estava feito, não é possível ao criador separar-se da responsabilidade que teve nele, nem da dedicação que lhe votou, nem, enfim, da obra que fez. Não é possível, nem é desejável, num mundo onde exista uma réstia de ética e deontologia. O encenador que ora assinou o espectáculo não passa de um testa-de-ferro. Isto é grave? É. A tentativa de passar por isento, fazendo algo em proveito próprio, é ofensiva. Existir um fiscal que não só permite, como é parte activa, numa farsa tão refinada, é insultuoso. Mas o que causa repulsa é a ideia de que um encenador se pode alijar da encenação, como se alija um burro da carga. Isso é um desrespeito pela profissão de encenador, que incapacita o detentor dessa ideia de executar qualquer tarefa de acompanhamento de qualquer actividade artística. Era melhor ter assumido até ao fim o que estava em jogo, declarando o conflito de interesses. Assim, pelo menos, dar-se-ia o devido desconto aos juízos emitidos. E se não era possível, então não era possível. Mas para a esperteza saloia nada é impossível. Não havia necessidade, parte II.

Esta DG Artes é, senão a melhor, uma das melhores administrações das artes que temos desde que me lembro – desde 1995, vá. Com um orçamento abaixo do mínimo, e dentro do pior dos Governos possíveis, tornou os processos transparentes, reforçou a rede regional, viabilizou a internacionalização e criou instrumentos de recolha de dados para informar as políticas. Claro, os artistas estão enterrados até ao pescoço em formulários. Mas é uma administração isenta, que persegue os fins para que existe. O Festival de Almada é o mais importante fórum teatral do país. Eu repito: o Festival de Almada é o mais importante fórum teatral do país, com um público cúmplice e atento, uma boa amostra da produção nacional e internacional, e uma relação intensa com o trabalho anual da Companhia de Teatro de Almada e do Teatro Municipal Joaquim Benite. Para os amantes de teatro, não há melhor. (O Alkantara não tem a mesma dimensão e o FITEI está exangue.)

Uma coisa é o que as personagens dizem, outra é o que elas fazem – uma ideia básica quando se trabalha no teatro. A literatura dramática está cheia de exemplos. Basta pensar no Malvólio, da Noite de Reis, de Shakespeare, ou noutro falso beato, o Tartufo, de Molière. Que uma instituição ou um cidadão com responsabilidades públicas representem esses papéis de eunuco, como se ninguém conhecesse os segredos por trás dos enredos, é insuportável. Ficar calado, também. Mas já estamos em Agosto, o mês que tudo pode. Esperemos que o pano corra o mais depressa possível.

Crítico de teatro

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