A muito invulgar história de Penelope

É uma história singular. A de uma mulher que adiou o talento até aos 61 anos, quando publicou o primeiro romance, e ficou famosa aos 80. Penelope Fitzgerald, a Life, de Hermione Lee, é um ponto alto na biografia literária, o retrato de uma grande escritora a quem a vida obrigou a viver até poder escrever.

Fotogaleria
Com o marido, Desmond, a 15 de Agosto de 1942 Penelope Fitgzerald, A Life
Fotogaleria
Na sua casa em 1982-83 Penelope Fitgzerald, A Life
Fotogaleria
Em Julho de 1999, no nº.27 A de Bishops Road Penelope Fitgzerald, A Life
Fotogaleria
Penelope nos tempos de Oxford, quando lhe chamavam blonde bombshel Penelope Fitgzerald, A Life
Fotogaleria
Penelope em 1957 Penelope Fitgzerald, A Life

Não escreveu antes porque não teve tempo. Começou aos 61 anos, publicou nove romances, poesia, contos e ensaio. Em 20 anos de escrita, os últimos da sua vida, foi quatro vezes finalista do Booker Prize e ganhou uma vez. É considerada uma das grandes escritoras - entre homens e mulheres, não importa o género - de língua inglesa do século XX, mas nunca foi popular.

Os mais novos pouco sabem dela. Penelope Knox Fitzgerald teve uma existência tão substantiva quanto os seus livros, com o humor a pontuar tragédias pessoais e uma capacidade de invenção que contrasta com o modo discreto de tratar as emoções que só acentuaram a experiência do vivido e do escrito. Não há palavras a mais nesta mulher que Hermione Lee (n. 1948) trata de forma brilhante numa biografia lançada faz um ano em Inglaterra e publicada do outro lado do Atlântico no fim de 2014, que recupera o “génio” literário de Penélope Fitzgerald quase 15 anos depois da sua morte.

O livro de Hermione Lee, Penelope Fitzgerald, A Life (Knopf), foi considerado um dos mais belos editados na América. A Greenlight Bookstore, em Brooklyn, tinha-o na sua apertada selecção do ano entre os muito recomendáveis. A McNally Jackson, no Soho, livraria que pretende ser um dos novos centros literários de Nova Iorque, exibia-o em destaque. Os suplementos literários não o esqueceram entre os melhores dedicando-lhes páginas assinadas por nomes prestigiados. Está nas grandes superfícies e nos nichos, unânime. No final de Novembro, o famoso crítico norte-americano James Wood dedicou-lhe um longo artigo na revista The New Yorker, e no início de Dezembro o romancista inglês Alain Hollinghurst escreveu na prestigiada The New York Review of Books um texto a que deu o título "A Vitória de Penélope" onde conta a singular história de uma mulher que esperou quase 40 anos para cumprir o que todos esperavam dela quando saiu de Oxford, em 1938, com 22 anos: tornar-se escritora.

Não se sabe ainda se o livro será editado em português. Nenhuma das muito aplaudidas biografias que Hermione Lee (n. 1946) escreveu antes, como a de Virginia Woolf (1996) ou a de Edith Wharton (2007), o foram. Com apenas dois livros publicados em Portugal – A Flor Azul (Relógio d’Água, 2010) e A Livraria (Clube do Autor, 2011) --, Fitzgerald é muito menos conhecida entre nós e seria uma surpresa se tal acontecesse. Com este volume, Lee volta a revelar-se uma referência quando se fala de biografia literária assinando um auxiliar inestimável para convencer os mais distraídos acerca do talento da biografada.

Penelope Fitgzerald, A Life é um exemplo da capacidade invulgar de Hermione Lee para escrever sobre a vida, não se limitando a reunir factos, mas explorando temas, paisagens, conjugando os aspectos psicológicos com o momento histórico particular, no que resulta um retrato tão complexo quanto sensível do biografado, enquadrado a obra com os aspectos mais prosaicos que estiveram envolvidos na sua criação. “O palácio do bispo de Lincoln estava gelado e cheio de agitação no Inverno de 1916.” É a primeira frase (numa tradução muito livre) da biografia, a remeter para o tempo em que Penelope nasceu, a 17 de Dezembro, neta de um bispo, filha do poeta e escritor satírico Edmund V. Knox e de Christina Frances, uma mulher a que Penelope, ou Mops, como lhe chamaram desde pequena, se referia como tão inteligente quanto discreta.

Estranhas e originais
Penelope seguiu esse exemplo em parte. Tornou-se uma jovem tão inteligente quanto esquiva, e uma mulher tão difícil de catalogar como as suas obras, nas quais nunca deixou de escrever sobre si mesma, mas mantendo-se reservada, ou “oculta” na sua privacidade, escritora com uma visão trágica da vida e um estilo irónico, forte nas suas convicções mas cheia de silêncios.  

A biógrafa sublinha a coerência entre a mulher e a autora, referindo-se aos nove romances de Penelope Figtzerald como obras-primas “estranhas e originais”, que por sua vez Alain Hollinghurst considera estarem num permanente crescendo de qualidade – “os melhores foram os últimos”, escreveu – e James Wood classifica como livros autoritários no sentido em que, com todas as reticências que deixam sobre a autora, revelam a sua enorme vontade de ser ouvida no pouco tempo que, sabia, lhe restava.

“A sua vida é em parte uma história de atrasos – paciência e espera, um começo tardio e um estilo tardio. Em alguns aspectos era como outras mulheres escritoras da sua geração que começaram a publicar na meia-idade ou já idosas. Mas ela foi como nenhuma outra”, refere Hermione Lee na introdução a esta biografia de cerca de 500 páginas sobre uma escritora que publicou o primeiro livro aos 58 anos, a biografia do artista Edward Burn-Jones, e o primeiro romance, The Golden Child, aos 61. Seguiram-se The Bookshop, em 1978; Offshore, vencedor do Booker Prize em 1979, tinha ela quase 64 anos; Human Voices (1980); At Freddie’s (1982); Innocence (1986); The Beginning of Spring (1988) e The Gate of Angels (1990).

The Blue Flower, o último e considerado o seu melhor romance, ganhou o National Book Circle Award nos EUA e foi publicado em 1995, tinha 79 anos. Penelope Fitzgerald morria cinco anos depois, a 28 de Abril de 2000, no auge da fama e no mesmo ano em que saíram os contos The Means of Escape e At Hiruharama. Meses antes, tinha deixado uma nota na sua agenda, uma tarefa para o mês de Março precisamente de 2000: “GET BUS PASS.” Nunca se viu como a “grande” escritora que Hermione Lee começa por lhe chamar no livro.

Viver a tragédia pessoal
A vida de Penelope Knox, a rapariga de quem a família – formada por gente da aristocracia intelectual e religiosa – e amigos esperavam tanto, mudou quando casou com Desmond Fitzgerald, em 1942. Antes, tinha ido para Oxford onde esperava encontrar muitos poetas e conhecer um mundo de orgias de que a literatura, a poesia e os mexericos lhe falavam. Desiludiu-se nesse aspecto. Não viu muitos talentos e o vício e o prazer passaram-lhe um pouco ao lado enquanto se destacava como estudante, atraindo a atenção de colegas e professores, e o seu aspecto lhe valia a alcunha de blonde bombshel, uma loura de criatividade explosiva mas pouco atraente, namoriscando sem consequências, nomeada mulher do ano da universidade pelo Isis, jornal estudantil de Oxford, quando se formou, em 1938.

Esperava-se um romance, um livro que ela mesma queria escrever depois de anos a ler. Foi para Londres onde partilhou o apartamento com o irmão, Rawle, dois anos mais velho e que seria feito prisioneiro durante a guerra pelos japoneses. O pai, jornalista, arranjou-lhe trabalho como crítica de cinema. Quando a guerra começou, trabalhou para um gabinete governamental e colaborou com a BBC, uma experiência que, como a maior parte das que viveu, transportou para o romance. No caso para Human Voices. Por esta altura conheceu um homem de uma “beleza sombria”, na expressão de Lee, “atraente, atlético, brilhante, charmoso e um pouco selvagem”. Casaram. Ele alistou-se, combateu na Líbia e esteve na batalha de Monte Cassino, em Itália. Regressou como herói, mas totalmente mudado. O trauma e o álcool tomaram conta dele. Começava a vida que Penelope teve de viver. Abortos, um filho que morreu logo após o nascimento, o dinheiro a escassear. Venderam móveis, mudaram-se para uma casa mais barata, na povoação de Southwold, em Suffolk, que Penelope haveria de considerar um “lugar definitivo”. Um dia acabaram com tudo o que tinham no passeio, postos na rua, incapazes de pagar a renda.

A capacidade de adaptação de Penelope a uma vida que não conhecia e onde faltava quase tudo é ressalvada no livro de Lee. Estóica, pragmática, não pedia ajuda à família e carregou sozinha a responsabilidade de sustentar os filhos – Valpy, Tina e Maria -- e um marido alcoólico que trabalhava mas era incapaz de ajudar nas despesas. Passou a dormir no sofá e durante anos, entre casas precárias, não teve um quarto para si própria. A escassez passou a marcar a sua existência. A criatividade dirigia-se para a economia doméstica. Como alimentar e vestir os filhos enquanto era professora? Lee chama a atenção para uma resistência que não era afinal à prova de tudo. Mops pensou algumas vezes no suicídio. Uma conclusão retirada dos poucos testemunhos biográficos que ela deixou sobre a sua própria tragédia.

Muito do que se pode reconstituir sobre isso estará nos romances. Em A Livraria, a protagonista Florence Green vive num desespero semelhante, mas sempre contido, às voltas com a insónia de onde tem de nascer o engenho da sobrevivência. “Deixou muito por dizer”, reconhece a biógrafa que explorou muitas entrelinhas para um puzzle que, nalguns pontos, James Wood critica. Em especial algumas interpretações. Como a de que Penelope atrasou a escrita. Para Wood ela foi sobretudo uma mulher que “soube esperar”. E nessa perspectiva, quando escreveu foi dona de uma sabedoria que faz que cada frase soasse definitiva, e tudo o que dizia na escrita, no modo enigmático que a caracterizava, fosse objecto de todo o interesse, um pouco à imagem de quem só fala quando tem algo muito importante para dizer.

A escrita começou quase em simultâneo com a morte do marido, em 1976. Quando começou a ter o seu próprio quarto. Quando os filhos estavam criados e alguns já escreviam. E foi uma escrita torrencial. Em 1977, segundo conta Hermione Lee, Penolope Fitzgerald estava a escrever cinco livros em simultâneo. Colocando real e imaginário em romances breves, lugares onde nunca esteve, mas de enorme verosimilhança. A biografia The Knox Brothers (1977) sobre os tios e o pai, uma geração que retrata como brilhante, revela muito da sua infância e do ambiente onde cresceu, próxima de gente como Evelyn Waugh, protegida, onde lhe estimularam a ambição criativa.

Porquê tão tarde? O que teria feito esta “liberal inglesa” que acreditava que a arte se fazia de trabalho, que tinha como heróis, Ruskin e William Morris e se inspirava em quem vivia nos extremos da sociedade, se começasse mais cedo? Todas as perguntas sobre ela, mesmo a que interroga sobre a razão pela qual é menos lida do que a qualidade da sua prosa merece, se resumem a uma, como salienta Hermione Lee no inesquecível prefácio: Quem é Penelope Fitzgerald? 

Sugerir correcção
Comentar