A maturidade de Moreno e o fulgor juvenil de Naverán

O rigor e o conhecimento profundo das práticas musicais históricas da guitarra espanhola de José Miguel Moreno e a liberdade expressiva do violoncelista Pablo de Naverán na música de Bach mostraram duas posturas contrastantes do universo da interpretação no Festival do Estoril

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José Miguel Moreno @Festival de Música do Estoril

Festival de Estoril Lisboa

José Miguel Moreno (vihuela, guitarra barroca e guitarra pós-romântica)
A Guitarra espanhola (1500-1900)
Lisboa, Palácio da Ajuda
17 de Julho, às 21h30
5 estrelas

Pablo de Naverán (violoncelo)
Suites para Violoncelo nºs 1, 3 e 6, de J. S. Bach
Lisboa, Palácio da Ajuda
22 de Julho, às 21h30
3,5 estrelas

O guitarrista e alaúdista José Miguel Moreno é um dos intérpretes recorrentes das programações do Festival do Estoril, que este ano estendeu parte dos seus concertos a espaços do património histórico de Lisboa como é o caso dos Mosteiros dos Jerónimos e de São Vicente de Fora ou do Palácio da Ajuda. Foi precisamente na Sala D. Luís do Palácio da Ajuda, detentora de uma excelente acústica, que José Miguel Moreno apresentou um fascinante percurso de quatro séculos (de 1500 a 1900) pela música espanhola para cordas dedilhadas. O músico espanhol, que também é luthier, foi comentando o concerto, tanto no que diz respeito aos repertórios como aos três instrumentos utilizados, e no final entrou num ameno diálogo com o público.

Uma diversificada selecção de obras e géneros abrangeu três épocas, representadas por títulos sugestivos: Um século de ouro, com música da Renascença para vihuela (instrumento ibérico semelhante à guitarra mas com seis pares de cordas) de compositores como Fuenllana, Pisador, Ortiz, Narváez e Mudarra; Assombro e Sedução, com obras para guitarra barroca da autoria de Martin y Coll e Gaspar Sanz; e Expressão e Sentimento, uma incursão no mundo da guitarra pós-romântica através da música de Francisco Tárrega e Fernando Sor. 

A inteligente e criteriosa escolha do programa serviu de base a uma prestação depurada de notável rigor técnico e transparência, que transmitiu ao ouvinte com grande nitidez as texturas das obras polifónicas, a fluência das ornamentações e glosas na arte da variação (como em Tan que vivray de Sermisy/Fuenllana ou nas Diferencias sobre Guardam ela Vacas, de Narváez) e os ritmos e percursos harmónicos bem delineados das múltiplas danças.

O primeiro bloco terminou com a magnífica Fantasia, de Mudarra, dando lugar aos ritmos  contagiantes e sonoridades luminosas dos Canarios, de Martin y Coll, e de danças de Sanz como as Españoletas, a Folia e o Rujero. A beleza do som, a forma como Moreno faz cantar a vihuella ou a guitarra nas páginas mais introspectivas, e a facilidade com que passa de uma técnica para outra e de um instrumento para outro são outros aspectos dignos de nota. Com a Mazurca e o Andante sostenuto, de Tárrega, e a Introduction et variations sur l’air Malborough op. 28, de Sor, o músico espanhol mostrou um outro tipo de virtuosismo e agilidade e mergulhou com elegância na estética oitocentista.

O bom gosto, um conhecimento profundo das práticas e estilos de execução históricos, bem como uma certa sobriedade que não cede a efeitos fáceis, são traços bem evidentes do perfil de Moreno como intérprete. Trata-se de uma escola bem distinta da do seu compatriota Pablo de Naverán, jovem violoncelista com uma afirmação crescente no plano internacional, que se apresentou no festival na terça-feira e é um dos professores da presente edição dos Cursos Internacionais de Música do Estoril.

O seu recital foi inteiramente dedicado a J. S. Bach, tendo tocado as Suites para violoncelo solo nºs 1, 3 e 6, com grande liberdade expressiva. Pablo de Naverán tira do violoncelo uma sonoridade opulenta, possui grande desenvoltura técnica (que apenas se ressentiu na Giga da Suite nº6) e um forte poder de comunicação, apostando numa interpretação pessoal, sem uma preocupação evidente em relação aos preceitos estilísticos da linguagem Barroca no que diz respeito a parâmetros como a articulação, o fraseado ou a dinâmica, nem ao legado das interpretações historicamente informadas, que tem marcado as últimas décadas.

Principalmente nos Prelúdios, nas Allemandes e Sarabandas, o seu discurso não se coíbe de fazer flutuações de tempo ao sabor da sua sensibilidade e, em geral, usa uma ampla paleta dinâmica e uma variedade de nuances mais próximas do universo romântico — opções interpretativas postas ao serviço da sua fulgurante musicalidade em detrimento de uma visão mais analítica das obras e do contexto estético que lhe deu origem.

 

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