A marca de água da literatura de viagens

Veneza por Antero, numa tradução que lê e recria. Uma versão que faz de um registo funcional o brilhante testemunho de um autor maior

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Antero é um dos casos notáveis da literatura portuguesa. E dos mais complexamente interessantes que nela surgiram DR

É possível que mantenha uma certa actualidade o diagnóstico que Ruy Belo fazia da situação de Antero em 1966 (na sua edição das Prosas Dispersas). Será possível dizer que significativamente se alteraram as condições que levaram o autor de País Possível a falar de um “grande desconhecido”? Já não será justo falar, como então, de um autor “muito mal editado” – as Cartas foram alvo de excelente edição na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a cargo de uma autoridade anteriana, Ana Maria Almeida Martins (que já assinara O Essencial sobre Antero de Quental, na mesma editora); os Sonetos Completos foram publicados, também na INCM, com edição de Nuno Júdice; e os Sonetos Completos a cargo de António Sérgio (Sá da Costa) são um clássico a preservar. No entanto, uma das autoridades na biografia do poeta açoriano continua a ser o mesmo José Bruno Carreiro (apesar de trabalhos de Hernâni Cidade, Vítor de Sá e Óscar Lopes, que nunca deixam de recorrer a Carreiro) que Ruy Belo citava, ao começar o seu texto proemial. Se tivermos em conta que a modelar biografia de J. B. Carreiro data de 1948 (com reedição na década de 80), talvez nos seja possível perceber o pouco que mudou. Talvez continuem a fazer-se sentir os efeitos do mito, cuja persistência Ruy Belo glosou, no texto citado. O pouco caso terá, porventura, contribuído para tal situação.

Antero é um dos casos notáveis da literatura portuguesa. E dos mais complexamente interessantes que nela surgiram. António Sérgio chamou-lhe “homo duplex”, e pôs em evidência a sua tendência “luminosa” e “nocturna”; o próprio Antero escreveu, num dos seus sonetos: “Nenhum de vós ao certo me conhece”. É este autor que a editora Pianola volta a pôr no centro de uma desejável atenção. É indiferente que o tenha feito com esta muito sui generis tradução, “uma recriação ou até mesmo uma reconstrução” (p.7) – conforme estipula Andrea Ragusa na sua introdução, exemplo invulgar de um saber sobremaneira exacto e adequado. Antero falou mesmo de “transplantação” (num artigo sobre traduções de poesia lembrado por Andrea Ragusa). Ragusa explica, com elegante minúcia, a génese, as diferentes fases e peculiaridades do trabalho do Antero tradutor. Como explica, “Venice de Thomas Bonney, retirado do primeiro tomo da primeira parte de Picturesque Europe (The Continent), pode considerar-se o ponto de partida da edição portuguesa trabalhada pelo poeta açoriano” (p.11). O texto de Antero – pois seu se tornaria, pode dizer-se – viria a sair em 1881, no primeiro volume de A Europa Pittoresca, editada em Paris por Salomão Sáragga.

Aquela espécie de decorativismo convencional e cumpridor do original em língua inglesa deu lugar às firmes disposições de Antero, e ao seu português plástico, de uma concisão quase clássica. O autor das Odes Modernas é, por exemplo, capaz de recorrer ao exemplo ilustre de John Ruskin, mas está disponível para lhe retirar a autoridade no momento exacto. Como fará para denegar o seu pré-rafaelitismo refractário à arte do Renascimento, numa defesa intransigente da Idade Média, inadmissível para Antero, que exprime essa posição com nítido vigor. O simples cotejo dos dois textos – o que a presente edição possibilita, pois inclui as palavras de Thomas George Bonney – revela diferenças impressivas, mas que não corrompem o sentido original. Assim, as “mãos pesadas” do “tempo e dos inimigos” que pousam (pesadamente, diríamos) sobre Veneza, no original, deram lugar, em Antero, à sobriedade desta fórmula de abertura: “Veneza, apesar de decadente, é ainda bela” (p.31). Bem assim, onde o inglês perfunctoriamente alerta para bagagens e demais funcionalidades (sem excessivo aprumo, de resto), Antero agiliza, com sumária elegância – “Noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar. Hoje a cidade está ligada à terra-firme por um extenso viaduto, o do caminho-de-ferro que atravessa as vastas lagunas sobre um cento de lagos.” (p.37) Todo o pitoresco, por outro lado, como nos indica A. Ragusa, é alvo de excisão, por parte de Antero, que o substitui por apreciações muito mais analíticas e judicativas – “Este século cortesão e pedantesco, o século de Luíz XIV e de D. João V, não produziu, pode dizer-se afoitamente, uma única obra verdadeiramente superior. O estilo é mau, como são acanhados os pensamentos, como são mesquinhos os costumes da época.” (p.63) Escusado será dizer que a menção do monarca português é da lavra de Antero. Num quadrante bem distinto, quando o autor de que se socorre lhe merece uma admiração com menos reservas, como a que devota a Hippolyte Taine, não só o cita abundantemente – num caso, em mais de três páginas seguidas –, como o faz de forma exacta e com cuidados de estilista. Não por acaso as descreve como “páginas realmente eloquentes” (p.60).

Não deixa de ser irónico que Antero tivesse escrito sobre Veneza (reescrevendo, recriando, “transplantando”) sem nunca ter visitado a cidade dos doges. Especialmente tendo em conta que Antero de Quental não era, propriamente, pouco viajado, pelo contrário. Como disse Ana Maria Almeida Martins, “Antero recordará sempre a viagem à América, não lhe esquecendo mencioná-la na carta autobiográfica a Storck: ‘Viajei em França e Espanha e visitei os Estados Unidos da América.’” (Antero de Quental e a Viagem à América – Remando contra a Maré, org. Ana Maria Almeida Martins, Tinta-da-China, 2011) De resto, essa jornada americana ficou mesmo documentada, em A Viagem de Antero de Quental À América do Norte (1916), de António Arroio. O que, no entanto, nem por isso chega a ser garante de fiabilidade, como assevera, uma vez mais, AMAM, pois é nesta obra que “as imprecisões, os esquecimentos ou o mais completo delírio atingem o auge”. O certo é que a viagem foi um interesse fundo, para Antero de Quental, que escreveu, em carta de 1876: “A medicina já não me receita outra coisa senão viagens”. Escassos dois anos antes do seu suicídio, confessava mesmo, também por carta: “O mundo das ideias perdeu para mim os seus atractivos, e o que actualmente me agradaria seria o movimento e até a agitação: viagens, guerra, naufrágios e incêndios.” (Cartas, II, III, INCM, 2009) A viagem não era, por conseguinte, um pormenor secundário no quadro geral do vasto e complexo Antero. Nem mesmo nos seus gostos enquanto crítico. Numa apreciação do livro Viagens: Espanha e França, de Luciano Cordeiro, escreveu Antero, não sem relevo: “Tendo o Sr. Cordeiro escrito tanto, sobre tantos assuntos, altos, profundos e até graves, este livro, ligeiro como é, vagabundo e escrito a correr, parece-nos o seu melhor livro!” Pese embora o sal da ironia com que o açoriano carregou a nota crítica, o seu fascínio pela literatura de viagens ficava bem patente. Como acontecia numa outra resenha, desta vez ao livro O Japão: Estudos e Impressões de Viagem, de Pedro Gastão Mesnier: “Terminamos fazendo votos para que a tradição dos verdadeiros viajantes portugueses, já tão obliterada, mas que de tempos a tempos algum livro, como o do sr. Mesnier, nos indica não estar de todo perdida, encontre nas nossas possessões quem a saiba compreender e continuar.” (Contracapas – Contribuição Anónima para a Revista Ocidental, org. Ana Maria Almeida Martins, Tinta-da-China, 2008) Vão exactamente nesse sentido, as palavras de Andrea Ragusa: “a literatura de viagens foi uma das poucas diversões que o seu estado de saúde lhe permitia no período da ‘crise pessimista’ – esto é, de 1874 até cerca de 1881 – como o próprio Antero afirmava numa carta ao amigo Batalha Reis: (…) o que leio é meramente como distracção: viagens, história, narrativa e nada mais” (p.7).

A forma como a Pianola Editores trouxe até hoje o texto de Antero é uma demonstração notável de quanto a atenção ao acerto gráfico e à qualidade na impressão, na disposição das manchas tipográficas, na escolha dos tipos, é ainda um factor subtil e soberanamente diferenciador. A inserção das gravuras de época, na sobriedade clássica do seu claro-escuro, e o modo de as posicionar e intercalar no corpo do texto, funcionam como complementos inteligentes do aprumo gráfico posto neste volume soberbo.

 

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