A maior parada gay em Jerusalém (ou finalmente algo feliz)

1. Ninguém morreu, ninguém foi esfaqueado, muitas centenas de pais levaram crianças, bebés, até recém-nascidos, muitos religiosos fizeram questão de participar, e Jerusalém viveu, em paz, a sua maior parada gay de sempre, na quinta-feira. Cinco vezes mais pessoas do que no ano passado, quando um judeu ultra-ortodoxo esfaqueou seis participantes, matando uma adolescente. Foi a maior festa que já vi na cidade, e, para quem cresceu aqui, um acontecimento. “Finalmente algo feliz em Jerusalém”, disse uma das minhas amigas, heterossexual, 31 anos, que veio de propósito de Telavive, como milhares vieram de outros lugares de Israel, heteros e LGBTs, religiosos e laicos. Entre atentados quase diários na Europa ou na Ásia, a Turquia a caminho do pesadelo e Trump candidato nos EUA, finalmente algo feliz no mundo.

2. Jerusalém não é Berlim, claro, onde a parada gay junta um milhão nas calmas, ou sequer Telavive, o lugar mais gay friendly de Israel, onde a parada gay este ano juntou 200 mil (numa cidade que não chega a um milhão, num país de oito milhões). Sendo a cidade santa de judeus, cristãos e muçulmanos, Jerusalém tem, especificamente, uma presença esmagadora de haredim, os judeus ultra-ortodoxos, que beneficiam de apoios do Estado, para aqui viverem sem outros meios de subsistência. Em nenhum outro lugar há esta proporção de haredim, e com tanta influência. Centenas de rabis ultra-ortodoxos condenam as paradas gay, chamando-lhes abominações, sodomas, exercendo pressão. Foi neste quadro que se deu o ataque de há um ano e que agora 25 mil pessoas desfilaram pelo centro de Jerusalém Ocidental, num clima de piquenique familiar. Um número gigante para uma cidade como Jerusalém. Os próprios organizadores esperavam apenas 10 mil, o dobro do ano passado, já contando que muita gente viesse justamente por causa do ano passado, contra o medo. E afinal quintuplicou.

3. Há fotografias de há um ano com o assassino em acção. Fato preto, kipa preta de veludo, grandes barbas, mala ao ombro, ele investe contra as pessoas de faca em punho, cara transfigurada de raiva, como num cartoon. O nome dele é Yishai Schlissel, um ultra-ortodoxo de Modi’in Illit, colonato enorme na Cisjordânia, mais de 60 mil habitantes, ou seja, uma cidade ilegal à luz da lei internacional, construída com o incentivo do Estado de Israel, em território palestiniano ocupado. Estive lá há uns dez anos, pouco antes de o governo israelita a ter declarado uma cidade, e já então era um colonato de prédios e prédios. Foi nessa altura que Schlissel fez o seu primeiro ataque: foi à parada de 2005 esfaquear gente. Por isso, esteve dez anos na cadeia. Saiu em 2015, na véspera da parada, os vizinhos viram-no distribuir panfletos apelando para “todos os judeus fiéis a Deus” correrem o risco de “espancamento e prisão” de modo a impedir a parada. Ainda assim, com os antecedentes que tinha, não foi seguido pela polícia nesse dia. Simplesmente saiu de um supermercado onde ficara à espera, tirou a faca do casaco (há fotografias) e começou a esfaquear. Shira Banki, 16 anos, teve menos sorte dos que os outros feridos. Morreu no hospital. Desfilara em solidariedade com os direitos LGBT, como milhares de heteros.

4. Depois desta morte, Schlissel foi condenado a prisão perpétua. No tribunal bradou que “onde houver uma parada gay, deve ser impedida a blasfémia contra Deus, impedida a loucura, e todo o povo de Israel se deve arrepender”. E há indicações de que agora, mesmo preso, terá tentado preparar um ataque. Na véspera, a polícia prendeu o irmão dele, Michael, e outros familiares foram impedidos de estar em Jerusalém na quinta. Entretanto, rabis extremistas continuaram a incendiar os ânimos, e na semana passada a parada gay prevista para Beersheba, no sul de Israel, foi cancelada após ameaças. Tudo somado, a tensão na véspera da parada de Jerusalém era enorme. Dois mil polícias foram destacados para o percurso, que teria revistas à entrada, e seria delimitado por barreiras. Na quarta-feira, o presidente da câmara, Nir Barkat, coligado com ortodoxos, declarou que não estaria presente “para não ser parte de algo que ofende a comunidade ultra-ortodoxa e a comunidade religiosa sionista”. Lembrou a sua colaboração anterior com movimentos LGBT, e foi pôr flores no memorial a Shira. “A câmara de Jerusalém, a polícia e eu faremos todo o possível para permitir que eles [LGBT] exerçam o seu direito”, disse ainda. “Mas têm de saber que isso ofende outras pessoas”, ressalvou. “Uma larga parte da população de Jerusalém tem grande dificuldade com a parada.”

5. Muitos heterossexuais e religiosos quiseram dizer o contrário, e isso fez toda a diferença desta parada. Sendo Julho, pico do calor, o encontro estava marcada para um parque a partir das 17h, e pouco depois já havia milhares de pessoas. Vendedores de sumos e gelados, barracas de fotografias, bandeiras arco-íris misturadas com bandeiras de Israel, e bandeiras arco-íris com estrelas-de-David lá dentro. Fila para a primeira revista, fila para a segunda, onde recebíamos uma pulseira lilás. O romancista David Grossman estava atrás de mim. Havia carrinhos de bebé por toda parte. Várias kipas, sinal religioso em algum grau. Não fosse o arco-íris predominante, podia ser uma simpática manifestação familiar de outra coisa qualquer. Mas que outra coisa qualquer reuniria escritores de esquerda, comunistas (muitas bandeiras vermelhas), movimentos religiosos LGBT (como o Havrutra, cheio de homens de kipa abraçados), tantos pais com filhos, tantos adolescentes na versão hippie 2016, vários pares gays abraçados ou de mão dada ou (raramente) num beijo, e uma dúzia de travestis, drag queens ou vestimentas mais noite-louca (nada radical)? Uma banca de gente de meia-idade com cartazes: “A minha filha é lésbica, e daí?” Todos pais de LGBTs. Um rapaz de coroa de flores e mão dada à mãe. Um rapaz de barba com um autocolante a dizer “Procuro marido”, ao lado uma rapariga com autocolante igual. Pares hetero com carrinho duplo de gémeos, abraçando os amigos. E aquele par, claramente religioso, ela de saia comprida, mangas compridas, cabelo coberto, ele de kipa, com um bebé tão mínimo que não dava para acreditar. Eram a família Porat, o bebé tinha um mês e meio. Não achavam muito importante a classificação, disseram-me, mas consideravam-se judeu modernos-ortodoxos. Sorriam o tempo todo, rodeados de arco-íris. Uma parada humanista, de algum modo, o melhor possível de Israel.

6. Algumas pessoas traziam cartazes com as frase dos rabis radicais, e cantavam “Não matarás”. Mais à frente havia uma banda feminina de percussão, conduzida por um maestro barbudo de mini-saia. Uma barreira de autocarros vazios reforçava as grades laterais. Do outro lado da rua, bandeiras negras: eram as dezenas de contestários, religiosos e de extrema-direita, separados por todo um aparato policial. No fim da noite, a polícia anunciará ter detido cerca de meia-centena de pessoas, duas com facas.

7. No cruzamento antes do ponto onde Shira foi morta, muitas centenas de atrasados tentam entrar na marcha, bloqueados por uma fila de polícias. Vão entrando revistados um a um. Mais acima, está o retrato gigante de Shira, molhos de flores vermelhas. Os pais dela tinham apelado à participação. “No ano passado, a nossa filha foi morta por acreditar que toda a gente tem direito a viver a sua vida sem ter vergonha do que é”, disse o pai no parque onde a parada desagua. “Não deixem que o ódio, a ignorância e o preconceito vos consumam. Lutem pelo vosso direito.” 

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